Art.1º. Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra
a mulher, nos termos do § 8o
do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais
ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e
proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Art. 2o
Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda,
cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência,
preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
Art. 3o
Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à
vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça,
ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à
convivência familiar e comunitária.
§1º O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das
mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
§ 2o
Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo
exercício dos direitos enunciados no caput.
Art. 4o
Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e,
especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e
familiar.
Proteger as mulheres da violência no âmbito doméstico e familiar diz respeito
à capacidade do estado de garantir nossa segurança e nossa cidadania.
COMENTÁRIOS
Nesse sentido, afirma Lúcia Avelar (2004) que o debate entre cidadania e segurança
humana é essencial à democracia. A Lei Maria da Penha faz surgir o mecanismo
jurídico mais importante para a garantia da segurança das mulheres
Carmen Hein de Campos
174
e a promoção da cidadania feminina . Os altos índices de violência doméstica
praticados contra mulheres no Brasil informam um padrão sistemático dessa
violência e a impossibilidade do exercício da cidadania feminina sob essa inaceitável
condição.
Recente pesquisa da Fundação Perseu Abramo (2010) revelou que a violência
doméstica contra mulheres não se alterou nos últimos dez anos. Na pesquisa
realizada, 13% das mulheres relataram ter sofrido ameaça de surra (em
2001 o índice foi de 12%) e uma em cada dez mulheres (10%) relatou ter sido
espancada ao menos uma vez na vida (11% na pesquisa anterior). Observa-se,
portanto, que a violência nas relações conjugais de conjugalidade e domésticas é
uma realidade ainda persistente.
Essa tolerância tem uma longa trajetória jurídica muito bem documentada
por autoras feministas em mais de trinta anos de estudos e pesquisas, conforme
demonstram Grossi, Minella e Losso (2006).
Os primeiros estudos desvelaram
a lógica sexista dos julgamentos em torno da tese da ‘legítima defesa da honra’
ou ‘crimes da paixão’ (CORREA, 1981; 1983); o espancamento tratado como incidente
doméstico (ARDAILLON e DEBERT, 1987) e mais recentemente a violência
doméstica considerada delito de menor potencial ofensivo pela Lei 9.099/95
(Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais) com a aplicação da denominada
‘pena de cesta básica’ (CAMPOS, 2001).
Por fim, o caso Maria da Penha Maia
Fernandes expôs dramaticamente essa tolerância levada quase ao seu limite
(PANDJIARJIAN, 2007). A luta feminista contra esse (des)tratamento legal às
mulheres culmina com a edição da Lei 11.340/2006.
O artigo 1º do Título das Disposições Preliminares informa o objetivo da
lei de “criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher’,
e seu fundamento legal, o § 8º do art. 226 da Constituição Federal, a Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher (Conven-
ção CEDAW) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), e outros tratados
internacionais. Além disso, dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher
O art. 226 da Constituição Federal estabelece o dever do estado de proteger
a família e seu §8º dispõe que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa
de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência
no âmbito de suas relações”. (grifo nosso)
A obrigatoriedade de proteção, pelo Estado, de cada integrante da família é
decorrência expressa do estabelecido constitucionalmente. Nesse sentido, a Lei
Maria da Penha ao criar mecanismos para coibir a violência contra mulheres no
âmbito doméstico e familiar projeta a aplicabilidade da norma constitucional
aos direitos fundamentais à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança, irradiados
a partir do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. A
dignidade da pessoa humana implica o respeito e proteção da integridade física,
autonomia corporal e psíquica, individualidade, intimidade, privacidade (SARLET,
2003) e garantia do desenvolvimento autônomo da personalidade no âmbito
familiar. É evidente que se não houver respeito à vida e integridade física e
psíquica das mulheres, se não lhes for assegurada condições mínimas para uma
existência respeitada e se sua intimidade for violada, a dignidade estará seriamente
comprometida. É por isso que o exercício da violência no espaço doméstico
e familiar representa uso arbitrário do poder, violação expressa dos direitos
fundamentais e negação da dignidade humana
Nesse sentido, a exposição de motivos da Lei reforça a proteção dos direitos
fundamentais, a incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos
e o propósito de a legislação contribuir para a igualdade nas relações de gênero
no âmbito familiar:
“14. As disposições preliminares da proposta apresentada reproduzem as regras
oriundas das convenções internacionais e visa proporcionar às mulheres de
todas as regiões do País a cientificação categórica e plena de seus direitos fundamentais
previstos na Constituição Federal, a fim de dotá-la de maior cidadania
e conscientização dos reconhecidos recursos para se agir e se posicionar, no
âmbito familiar, e na sociedade, o que de certo, irá repercutir, positivamente, no
campo social e político, ante o factível equilíbrio das relações pai, mãe e filhos”.
A Lei 11.340/06 encontra ainda fundamento jurídico na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Convenção CEDAW) ratificada pelo Estado brasileiro4
.
O conceito de discriminação adotado pela Convenção é abrangente e vem expresso em seu artigo 1º como ‘toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente do seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo’.
A conceituação da discriminação prevista no art. 1º da Convenção é ampla
no sentido dos resultados que impliquem prejuízo ou anulação do gozo ou exercício
de direitos em base de igualdade com os homens, e embora refira expressamente
à categoria sexo, deve ser lida em conjunto com a recomendação especí-
fica do Comitê CEDAW5
sobre violência. Na sua Recomendação Geral 19 sobre
violência6
, o Comitê explicita que a violência baseada no gênero é uma forma de
discriminação dirigida às mulheres pelo fato de serem mulheres ou que as afeta
desproporcionalmente, impedindo-as de gozar dos direitos em igualdade com
os homens. Inclui atos que causam sofrimento ou dano físico, mental e sexual, as
ameaças de tais atos, coerção ou outras privações de liberdade. A relação entre
discriminação e violência que a Recomendação estabelece confirma o entendimento
da violência doméstica como discriminatória nas relações de conjugalidade
porque é dirigida às mulheres, pelo simples fato de serem mulheres, isto
é, a violência como um ato discriminatório de gênero. Ao fazer essa importante
vinculação, a Lei reforça o princípio constitucional da igualdade entre homens e
mulheres e da violência específica contra mulheres como uma forma de discriminação,
debilitando as críticas sobre sua inconstitucionalidade pela proteção
exclusiva às mulheres .
Por sua vez, o artigo 2º da Convenção dispõe sobre a obrigatoriedade dos
Estados-partes de adotarem todas as medidas para eliminar a discriminação contra
a mulher, inclusive medidas de caráter legislativo para modificar ou derrogar
leis, usos e práticas que constituam discriminação . Além dessa disposição, o artigo
3º da Convenção estabelece o dever dos Estados-partes de tomar medidas,
inclusive legislativas, com o objetivo de garantir o exercício e o gozo dos direitos
humanos e liberdades fundamentais em igualdade de condições com o homem.
Ademais, o Comitê CEDAW nas Observações Finais ao Relatório apresentado
pelo Estado brasileiro parágrafo 113, recomendou que o Brasil adotasse todas as medidas para combater a violência contra as mulheres em conformidade
com a Recomendação Geral No. 19 do Comitê para prevenir a violência,
punir os agressores e fornecer serviços para as vítimas. Além disso, recomendou
que o país adotasse, sem demora, uma legislação sobre violência doméstica, monitorasse
o seu cumprimento e apresentasse informações e dados gerais sobre a
violência contra mulheres em seu próximo relatório11.
Depreende-se dos dispositivos em comento que criar uma legislação especificamente
destinada a eliminar a violência contra mulheres tornou-se uma obrigação
para o Estado brasileiro.
A Lei 11.340/06 veio para realizar essa obrigatoriedade
e suprir a lacuna infraconstitucional. Nesse sentido, a edição da Lei Maria da
Penha sintetizou, no campo legislativo e normativo, o cumprimento pelo Estado
brasileiro de suas obrigações internacionais decorrentes da Convenção CEDAW.
Mas a Lei Maria da Penha também encontra fundamento na Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher
(Convenção de Belém do Pará).
Essa Convenção especificamente destinada ao
enfrentamento da violência é o mais importante instrumento normativo do sistema
interamericano para o enfrentamento das violências contra mulheres. Sua
relevância é tal, que a Lei incorporou vários de seus dispositivos em seu texto.
Por fim, o artigo 1º da Lei também dispõe sobre a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher a cargo dos Tribunais Estaduais
de Justiça e sobre o estabelecimento das medidas de assistência e proteção às
mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
A criação de Juizados
destinados ao julgamento dos crimes cometidos com violência doméstica é uma
importante inovação da Lei, e os Tribunais de Justiça têm o dever de criá-los. As
medidas de assistência e prevenção e as medidas protetivas que estão previstas
nos artigos 8º, 9º e 18 a 24, respectivamente, são outra novidade da Lei e objeto
de comentários específicos neste livro.
As disposições preliminares, de fato, informam que a Lei cria um estatuto jurídico
autônomo, com fundamento legal nos direitos humanos, com mecanismos
específicos e apropriados de proteção e assistência, e com uma jurisdição especial
para o tratamento dos delitos. Este estatuto jurídico autônomo estabelece regras
próprias de interpretação, aplicação e de execução.
Por fim, merece ser comentada a utilização da expressão ‘mulheres em situação
de violência’, que exprime uma mudança conceitual e não apenas semântica.
O direito penal e processual penal nomina como ‘vítimas’ aquelas pessoas
que sofrem uma ação delituosa ou se encontram no polo passivo da relação processual.
Durante muito tempo, o termo também foi utilizado pelas feministas
para se referir às mulheres que sofriam violência doméstica. No entanto, o termo
‘vítima’ foi bastante criticado pelas próprias feministas, uma vez que colocava as
mulheres em uma situação de passividade frente ao outro.
A mudança operada pela Lei, ao substituir a expressão ‘vítima’ por ‘mulheres
em situação de violência’, revela o abandono do lugar vitimizante e o caráter
transitório dessa condição. Esse novo lugar indica que a mulher está passando ou
vivenciando uma situação de violência que não é permanente, embora em muitos
casos possa ser bastante longa. Esse novo significado permite o deslocamento para
um lugar de sujeito, assim que cessada a violência ou encontrados os meios para
esse movimento. Essa mudança expressa o rompimento com termos estigmatizantes
atribuídos às mulheres que sofrem violência14 e a transformação do significado.
A crítica a essa alteração linguística parece não compreender o significado
e o alcance dessa mudança. Nessa nova conceituação não há possibilidade de
alguma referência à expressão ‘menor em situação irregular’, previsto no regime
anterior ao Estatuto da Criança e Adolescente15. A utilização ‘mulheres em
situação de violência’ provoca o sentido inverso a uma suposta solidariedade
universal entre as mulheres que o termo vítima evocaria. Em resumo, expressa
uma mudança teórica importante, de inconformidade com o lugar de ‘vítimas
passivas’ da violência ou de um ‘sujeito deficitário em sua capacidade jurídica’.
O artigo 2º da Lei estabelece o princípio da não discriminação para o gozo dos
direitos fundamentais inerentes à pessoa humana. Assim, a garantia do exercício
dos direitos fundamentais independe de classe, raça ou etnia, orientação sexual,
renda, nível cultural, idade ou religião. Nenhum desses marcadores pode impedir
ou dificultar o exercício ou o gozo dos direitos fundamentais, assegurando-se
particularmente a integridade física e mental, o aperfeiçoamento intelectual e social
e o acesso às oportunidades e facilidades para uma vida sem violência.
A exposição de motivos da Lei é mais uma vez reveladora:
É contra as relações desiguais que se impõem os direitos humanos das
mulheres. O respeito à igualdade está a exigir, portanto, uma lei específica
que dê proteção e dignidade às mulheres vítimas de violência doméstica. Não haverá democracia efetiva e igualdade real enquanto o problema da violência
doméstica não for devidamente considerado. Os direitos à vida, à saúde e à
integridade física das mulheres são violados quando um membro da família
tira vantagem de sua força física ou posição de autoridade para infligir maus
tratos físicos, sexuais, morais e psicológicos.
No entanto, sabe-se que preconceitos como o de classe, cor, orientação sexual
ou idade aumentam a vulnerabilidade das mulheres. Por exemplo, a dependência
econômica muitas vezes impede o rompimento da relação violenta ou a
relação violenta aumenta o grau de vulnerabilidade e dependência das mulheres.
Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a violência
doméstica constitui um grande obstáculo para o desenvolvimento econômico.
As mulheres que são vítimas de violência doméstica são menos produtivas no
trabalho. A sua menor produtividade representa uma perda direta para a produção
nacional e tem importantes efeitos multiplicadores: as mulheres menos
produtivas geralmente ganham menos e essa diminuição de renda, por sua vez,
implica uma diminuição do consumo e, por conseguinte, da demanda global
(BUVNIC, 1999).
Para o BID, os custos econômicos da violência se desagregam
em quatro categorias: os efeitos na saúde (gastos com atenção médica como conseqência
da violência), perdas materiais (gastos privados e públicos em polícia,
sistemas de segurança e serviços judiciais), custos intangíveis (o que as pessoas
estariam dispostas a pagar para viver sem violência) e transferências (valor dos
bens perdidos em roubos, destruição etc.). No Brasil, esses custos representaram
sobre o Produto Interno Bruto (PIB) 1,9% gastos em saúde, 3,6% em perdas materiais,
3,4% em custos intangíveis e 1,6% em transferências.
Da mesma forma, Relatório da Organização Mundial de Saúde (2002)16 informa
que o chamado ‘espancamento’ (battering) ocorre quando o abuso é repetidamente
no mesmo relacionamento e que a maioria das mulheres que são alvo de
agressão física geralmente passa por múltiplos atos de agressão no decorrer do
tempo, e diferentes tipos de abuso coexistem no mesmo relacionamento.
Nesse
sentido, o art. 2º reforça o objetivo maior pretendido pela Lei, que é a preservação
dos direitos fundamentais das mulheres e uma vida livre de violências.
Ademais, ao incorporar o conceito de gênero, a Lei não restringiu a prote-
ção à mulher enquanto ser biológico. Sexo e gênero são construções sociais e não
necessariamente correspondentes. Dessa forma, as “mulheres trans17” são protegidas
pela Lei. Essa proteção não se limita à identidade sexual, mas engloba a identidade de gênero, isto é, aquela cujo sexo biológico (masculino) não corresponde
à identidade de gênero (feminino).
Alguns autores defendem ser necessário prova da mudança de nome e alteração
de registro18, o que parece demasiado. Essa exigência limita o acesso à justiça
e o exercício do direito de proteção, criando um ‘vazio’ jurídico ao deixar fora
do alcance da Lei aquelas que não tenham feito a alteração formal da identidade.
Não parece razoável haver cidadãs que não possam recorrer à proteção judicial
porque o seu registro nominal não confere com sua identidade de gênero. Essa
obrigatoriedade criaria uma imposição para alteração de identidade civil, o que
não é uma exigência da Lei. Esse aparente conflito parece que se resolve em favor
dos direitos das mulheres “trans”, que por sua condição de vulnerabilidade social
merecem também a proteção jurídica. Assim, independentemente da troca de
sexo ou de nome, há um direito subjetivo à segurança e acesso à justiça.
Do ponto
de vista prático, para o registro da ocorrência policial, deve-se registrar o nome social
(como a trans se identifica) e os demais dados constantes na identificação civil.
O pleno exercício dos direitos fundamentais não se dá em abstrato e exige
condições concretas para sua realização. Daí a obrigatoriedade do poder público
de garantir esse exercício, em conformidade com o disposto no art.3º da Lei.
A primeira condição para o exercício pleno dos direitos fundamentais é
uma vida sem violência, objetivo máximo da legislação. Essa condição deve ser
assegurada pelo poder público através de políticas públicas.
O entendimento da complexidade do fenômeno da violência norteou a
proposta de tratamento integral que a Lei estabelece.
A vulnerabilidade social
vivenciada por grande parte das mulheres em situação de violência demanda
do poder público medidas concretas para a diminuição do risco de novas violências.
Muitas mulheres temem deixar a relação porque não têm para aonde ir,
ou porque não existem programas de atendimento psicológico, ou porque não
têm renda, e assim por diante. Torna-se imperioso pensar como os diversos programas
governamentais podem ser mecanismos de apoio e auxílio às mulheres.
Por isso, a integração das esferas governamentais e das políticas públicas é tão
necessária para, de fato, beneficiar as mulheres.
Os diversos programas devem
ser entrecruzados, de modo a formar-se uma rede de serviços postos à disposição das mulheres.
Os programas devem prever meios de inclusão facilitada ou prioritária em
casos de violência grave, risco de morte ou outra situação emergencial. Nesse sentido,
programas de renda, de proteção a testemunhas, abrigamento, dentre outros,
devem proporcionar às mulheres acesso prioritário. Além disso, seu modo
de acesso deve ser do conhecimento dos juizados da violência doméstica e familiar,
do Ministério Público, da Defensoria Pública, dos organismos de segurança e de organizações não governamentais que atendem mulheres. Assim, a rede deve
estar intra e interconectada, de modo a garantir o fluxo das informações.
Programas de natureza educativa também devem ser ofertados às mulheres,
não apenas para a educação formal, mas aqueles que possam desenvolver
suas capacidades laborais ou fontes de renda autônoma.
Desenvolver a autonomia
econômica das mulheres é condição necessária para o início de uma vida
nova. Propiciar as condições materiais para atingir esse fim é tão importante
quanto a existência de disponibilidade subjetiva das mulheres.
O acesso à justiça oportunizado pelos diversos mecanismos previstos na
Lei não pode ser obstaculizado pela omissão dos poderes públicos. Por isso, não
só a existência de políticas públicas e de rede de atenção, mas a criação dos juizados
de violência doméstica e familiar é condição necessária para o exercício
desse direito fundamental. Esses juizados devem ser providos com magistrados/
as capacitados/as e que compreendam a complexidade do fenômeno desse tipo
de violência. Em virtude dessa complexidade, a Lei prevê que os Juizados tenham
uma equipe multidisciplinar para auxiliar o juízo. Por fim, o § 2º reforça o comando constitucional da responsabilidade da família,
da sociedade e do poder público de efetivar as condições para o exercício
desses direitos. Vale dizer, ainda, que a família deve banir a violência e criar formas
de socialização que primem pelo respeito aos direitos das mulheres; a sociedade
não deve tolerar a violência doméstica e familiar; e os poderes públicos
necessitam cumprir, fazer cumprir e efetivar esses direitos através de políticas
públicas que articulem a prevenção, a assistência e a contenção dessas violências.
O art. 4º reforça o caráter integrativo e sistemático que deve permear a interpretação
desse novo estatuto legal que estabelece um sistema jurídico autônomo
regido por regras próprias de interpretação, de aplicação e de execução. Esse
novo estatuto jurídico, cujo objetivo é proteger, dar assistência e punir a violência,
deve ser interpretado à luz dos preceitos constitucionais e dos intrumentos
internacionais de direitos humanos que promovem a dignidade e os direitos.
As dúvidas de interpretação que porventura surjam quando de aplicação da
Lei devem guiar-se pela orientação ampla desse dispositivo. É de se ressaltar que
essa disposição reforça o afastamento do entendimento de alguns magistrados de
que a Lei se aplica também aos homens. O objetivo da Lei é cristalino – proteção às
mulheres em situação de violência –, sem possibilidade de aplicação aos homens.
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Disposições preliminares – artigos 1º, 2º, 3º e 4º
183
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Ouvidoria da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Relatório Anual de Atividades. SPM,Brasília,
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