segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Liberdade de religião: o caso da ayahuasca no Brasil e do peyote nos Estados Unidos

O direito mais importante

A internacionalização dos direitos humanos, e não a sua universalização, produz como consequência, no nível do direito positivo, a criação de normas constitucionais expressas no próprio texto da Constituição, assim como nos textos dos tratados referentes a direitos fundamentais. Esse evento da internacionalização pode ser analisado junto ao fenômeno da migração das ideias constitucionais, este que diz respeito ao próprio direito constitucional e que é representado pela absorção de interpretações que são feitas das normas constitucionais por tribunais estrangeiros. Todavia, esse processo não é automático e apresenta distinções, o que é uma virtude. Por exemplo, determinada interpretação de norma constitucional feita pela Suprema Corte americana pode ser distinta do tratamento dado a mesma situação no Brasil. Em jogo: a ayahuasca brasileira e o peyote americano.


No Grupo Multidisciplinar de Trabalho – GMT – organizado no âmbito do CONAD, houve a produção de um relatório final no qual, partindo-se da premissa de que as comunidades que usam, para fins religiosos, o santo daime e/ou vegetal e/ou hoasca, são religiões, regulamentou-se o uso da planta, aprovando-se os seguintes princípios deontológicos: uso restrito a rituais religiosos, em locais autorizados, vedado seu uso associado a substâncias psicoativas ilícitas; o uso religioso implica todo o processo de produção, armazenamento, distribuição e consumo da Ayahuasca, sendo vedada a comercialização e percepção de qualquer vantagem; deve-se evitar o oferecimento de pacotes de viagem por parte das comunidades religiosas; evite-se a propaganda da Ayahuasca; a prática do curandeirismo é proibida pela legislação brasileira; as comunidades devem se organizar juridicamente e exercer rigoroso controle sobre o sistema de ingresso de novos adeptos, mantendo-se organização das informações referentes ao participante.

O CONAD é o órgão normativo do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD e suas decisões deverão ser cumpridas pelos órgãos e entidades da Administração Pública integrantes do Sistema. A decisão que vem de ser citada é baseada no que preceitua a Constituição Federal, artigos 5, VI, e 215, § 1º, que tratam do direito de liberdade religiosa e do direito à cultura. Portanto, e desde que respeitados os princípios deontológicos acima mencionados, o uso religioso da Ayahuasca está permitido no Brasil, destacando-se que a decisão considera, de saída, as comunidades praticantes do ritual que se utiliza do vegetal como sendo religiosas, são, portanto, religiões, e não seitas, o que já demonstra uma interpretação bastante ampla do próprio conceito de religião, e ao menos no ponto de vista deste autor, adequado.

Enquanto no Brasil o uso da Ayahuasca é regulamentado e permitido, nos Estados Unidos a Suprema Corte decidiu, no caso Employment Division of Oregon v. Smith, 1990, que o uso da substância conhecida por peyote não é lícito. O caso envolveu duas pessoas, Alfred Smith e Galen Black, que foram demitidos de uma organização privada de reabilitação das drogas porque beberam o peyote num ritual de uma igreja indígena americana, para fins, portanto, religiosos. Quando foram dar entrada no seguro desemprego, foram considerados como não beneficiários por causa de sua má conduta, tendo em vista que a legislação do Estado do Oregon considera crime o uso do peyote e não o excepciona para fins religiosos. O caso foi parar na Suprema Corte, que deu razão ao Estado, pela votação de 6 a 3. O juiz Scalia foi o relator do acórdão. A questão era a de se saber se era constitucional a proibição, pelo Estado do Oregon, do uso do peyote, inclusive para fins religiosos, pois a lei não trazia essa exceção, à luz da Primeira Emenda, que trata do direito de liberdade religiosa. A Suprema Corte decidiu que a liberdade de crença é absoluta, enquanto que a de conduta não. Beber peyote no Estado do Oregon é crime, trata-se, portanto, de analisar a conduta. É a famosa dupla crença-ação. Entendeu-se, também, que como a lei de que se tratava era religiosamente neutra e de aplicação geral, e não uma específica com relação à religião, não era de se aplicar o teste do indeclinável interesse público – compelling state interest –, pelo qual o Estado, toda vez que discriminar direito fundamental, tem de provar que está protegendo um valor maior, embora a juíza O’Connor, ainda que concordando no resultado, fundamentou seu voto nesse sentido.

Esses fatos demonstram que a troca de informações a respeito das decisões tomadas pelas cortes constitucionais mundo afora é um processo que permite alargar nossas visões de mundo, contudo, isso não quer dizer que devamos importar e aplicar automaticamente ideias produzidas em outras realidades, de vez que podemos constituir uma sociedade diferente e, porque não dizer, mais respeitosa para com o diferente, o que para muitos significa tolerância. É isso. Sapere aude! Paulo Thadeu.

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