A Constituição Federal outorgou às Polícias Civis e Federal as funções de polícia judiciária e de polícia investigativa (art. 144, §§1º e 4º). Por sua vez, a direção das polícias é exercida pelos delegados de polícia de carreira, agentes de natureza política[1] que ocupam carreira jurídica, essencial e exclusiva de Estado (art. 2º, “caput”, da Lei 12.830/13).
Dando sentido à Carta Magna, a legislação atribuiu ao delegado de polícia a qualidade de autoridade policial, cabendo a ele a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei (como o termo circunstanciado ou o auto de apuração de ato infracional), objetivando a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais (art. 2º, §1º, da Lei 12.830/13).
A função exercida pelo delegado de polícia exige um enorme preparo jurídico por parte deste operador do Direito, já que durante o exercício de suas funções, em especial num plantão policial, pode se deparar com inúmeras ocorrências, das mais diversas possíveis, cabendo a ele decidir com isenção e tecnicidade jurídica em um curto espaço de tempo.
Nesta toada, é possível que seja apresentado ao delegado de polícia uma ocorrência em que a pessoa conduzida à sua presença seja possuidora de prerrogativa de foro em razão da função que ocupa e esteja em situação flagrancial, como preconizam os artigos 302 e 303 do CPP. Em tais casos, poderia a autoridade policial, caso esteja convencida da prática criminosa, lavrar o auto de prisão em flagrante em face do conduzido?
O foro privativo por prerrogativa de função consiste em uma jurisdição especial assegurada a certas funções públicas, tendo como matriz o interesse maior da sociedade de que aqueles que ocupam certos cargos possam exercê-los em sua plenitude, com alto grau de autonomia e independência, a partir de que seus atos, se eventualmente questionados, serão julgados por um Tribunal imparcial[2].
Ele não é um privilégio de tais agentes, mas sim um direito concedido pelas normas legais a fim de serem eles julgados por Tribunais, visando o exercício da função jurisdicional com maior autonomia, independência, e em prol do interesse social, cuidando-se da denominada competência “ratione personae”.
A respeito da possibilidade de prisão, a legislação é clara no sentido de que todos, com exceção do Presidente da República, podem ser presos em flagrante delito. Algumas autoridades, todavia, em virtude da função exercida possuem a prerrogativa de somente serem presos em hipótese de crime inafiançável, como parlamentares[3], advogados[4], magistrados, membros do Ministério Público. A respeito do Presidente da República, este detém de imunidade prisional, somente estando sujeito a prisão penal, decorrente de sentença penal condenatória transitada em julgado[5], a qual não é extensiva a Governadores de Estado e Prefeitos, nos termos do decidido pelo STF na ADI 1.026[6].
No tocante à autoridade competente para a decretação da prisão em flagrante e consequente lavratura do respectivo auto, a doutrina é pacífica quanto aos detentores de cargos políticos que é atribuição é do delegado de polícia, nos termos dos artigos 4º, 301, do Código de Processo Penal e artigo 2º, §1º, da Lei 12.830/13[7]. Entretanto, há divergência em parte da doutrina quando o assunto é relacionado a magistrados e membros do Ministério Público.
Com efeito, devemos ter em mente que o art. 40, III da Lei Orgânica do Ministério Público estabelece ser prerrogativa do membro da instituição “ser preso somente por ordem judicial escrita, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará, no prazo máximo de vinte e quatro horas, a comunicação e a apresentação do membro do Ministério Público ao Procurador-Geral de Justiça”.
Por sua vez, o inciso IV do mesmo dispositivo legal traz em seu bojo a prerrogativa de foro em razão da função desempenhada pelo membro do Ministério Público: “ser processado e julgado originariamente pelo Tribunal de Justiça de seu Estado, nos crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada exceção de ordem constitucional”.
Logo, devemos dividir dois tipos de situações diametralmente opostas: a prática de crime afiançável e a prática de crime inafiançável por aquele detentor de foro por prerrogativa de função. No primeiro caso, tendo em vista a prerrogativa de não ser preso em flagrante delito pela prática de crime afiançável, caberá ao delegado de polícia realizar o registro dos fatos, ouvindo todos os envolvidos em apartado e, com base no art. 40, III, da Lei 8.625/93, deixar de decretar a prisão em flagrante do agente público em razão da existência da prerrogativa que ostenta face ao exercício de sua função, liberando-o e remetendo cópia do procedimento ao Procurador-Geral de Justiça em até 24 horas.
Na prática, caso o delegado de polícia se depare com uma ocorrência envolvendo um membro do Ministério Público, ou até mesmo um magistrado, deverá contatar, imediatamente, a Procuradoria do Ministério Público ou a presidência do Tribunal de Justiça, a fim de cientificar o órgão ou Poder do qual o conduzido faça parte.
Vejamos que no caso acima não será imposta, em hipótese alguma, a prisão em flagrante delito ao detentor do foro por prerrogativa de função, haja vista que se trata de uma infração penal afiançável.
Porém, postura diversa deverá adotar o delegado de polícia no caso de a infração praticada pelo agente detentor da prerrogativa de foro ser inafiançável. Tais infrações penais estão previstas no art. 5°, XLII, XLIII e XLIV da Constituição Federal, em rol taxativo. São elas: crime de racismo, crimes hediondos e seus equiparados (tráfico de drogas, tortura e terrorismo) e o crime de ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
Neste caso, o delegado de polícia detém a atribuição da lavratura do ato em face do agente possuidor de foro por prerrogativa de função, devendo, contudo, se ater às particularidades previstas na Constituição Federal ou nas respectivas leis orgânicas. Assim, no caso de flagrante da prática de crime inafiançável por magistrado, deve a autoridade policial ater-se ao artigo 33, inciso II, da Lei Complementar 35/79 (LOMAN):
Art. 33 - São prerrogativas do magistrado:II - não ser preso senão por ordem escrita do Tribunal ou do órgão especial competente para o julgamento, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará imediata comunicação e apresentação do magistrado ao Presidente do Tribunal a que esteja vinculado (vetado)
Sobre o tema, defende Renato Brasileiro de Lima[8] que
é bom ressaltar que o fato de a prisão captura ter sido feita pela autoridade policial não significa, necessariamente, que ocorrerá a lavratura do auto de prisão em flagrante pelo Presidente do Tribunal ou pelo Procurador Geral. Afinal, cabe a esta autoridade um juízo de valoração das condições objetivas da flagrância e verificação da razoabilidade probatória dos indícios colhidos, a fim de determinar a medida extrema de constrição da liberdade.
Todavia, data maxima venia, entendemos que este não é o melhor posicionamento a ser adotado. Isso porque não se atentou o autor que parte do dispositivo da Lei Orgânica da Magistratura, reproduzido pelas leis orgânicas dos Ministérios Públicos, foi vetado em sua parte final e, ao visualizar as razões do veto[9], encontra-se a seguinte justificativa: “a expressão 'e em cuja presença será lavrado o auto respectivo', in fine, no item II do art. 33, dado que seria impraticável a autuação, em todos os casos, sem prejudicar a flagrância do delito”.
Assim, fazendo uso da interpretação sistemática do dispositivo junto com a exposição de motivos do veto, conclui-se que a ausência do Presidente do Tribunal, bem como do chefe do Ministério Público, não impede que o delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial prevista na legislação ordinária, proceda à lavratura do respectivo auto prisional, apresentando o magistrado ou membro ministerial, no prazo de 24 horas, ao presidente do TJ ou ao PGJ, que então analisará a regularidade da prisão nos termos do artigo 310 do Código de Processo Penal.
Raciocínio semelhante é aplicado aos casos de audiência de custódia implantadas por meio da Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça[10], a qual determina que, no caso de prisão em flagrante em que não for possível o arbitramento de fiança pela autoridade policial ou caso não ocorra o seu recolhimento, deve a pessoa presa ser apresentada no prazo de 24 horas perante o juiz de direito.
Este é o entendimento presente na doutrina majoritária como bem ensina Rogério Greco[11]:
Há outras pessoas que somente podem ser presas em flagrante se estiverem praticando crimes inafiançáveis. Nesse caso, podemos citar: (...) 3. Magistrados; 4. Membros do Ministério Público Estadual; 5. Membros do Ministério Público da União. Além disso, também é importante frisar que o policial, nos casos em que não seja possível a prisão em flagrante, se insistir em levá-la a efeito, poderá ser responsabilizado criminalmente por abuso de autoridade. Assim, imagine-se a hipótese em que um membro do Ministério Público esteja praticando um crime considerado pela lei como afiançável, a exemplo do que ocorre com o delito de desobediência, tipificado no art. 330 do Código Penal. Nesse caso, a autoridade policial deverá, tão somente, lavrar boletim de ocorrência e as oitivas, a fim de encaminhá-lo ao chefe da instituição ministerial, vale dizer, ao Procurador-Geral de Justiça, para que tome as providências necessárias.
No mesmo sentido é o entendimento exposto no Manual de Polícia Judiciária da Polícia Civil do Estado de São Paulo[12]:
O Estatuto dos Magistrados não veda a prisão de integrante de sua instituição, porém, estabelece que esta só pode se efetivar nas hipóteses de flagrante de crime inafiançável, conforme disposição do art. 33, inciso II, da legislação comentada. Decorre dessa regra, que, estando o magistrado praticando crime inafiançável e preenchidos os requisitos do respectivo estado de flagrância, devem as autoridades policiais prender em flagrante o membro do Poder Judiciário. Igualmente como ocorre com os integrantes do Poder Judiciário, o membro do Ministério Público só pode ser preso em flagrante quando estiver praticando crime inafiançável, conforme conceituação estabelecida no artigo 302 do CPP.
Sem embargos das opiniões contrárias, não há dúvidas de que o delegado de polícia tenha a atribuição para decretar a prisão em flagrante delito de magistrado e de membro do Ministério Público quando houver a prática de crime inafiançável, tendo em vista que o Direito Processual Penal Constitucional determina que as regras sobre a formalização da prisão em flagrante são aplicáveis a todos, indistintamente (art. 5º, “caput”, da Constituição Federal).
Ademais, as enormes distâncias territoriais deste país inviabilizaria qualquer apresentação imediata ao chefe da Instituição, sendo que na esfera federal, muitas vezes, se encontra em outro ente federativo. Destaca-se, ainda, que se o próprio chefe do Estado brasileiro, bem como parlamentares, os quais detém imunidades constitucionais quanto às prisões preventiva e temporária, estão sujeitos às regras da prisão em flagrante, pode se falar o mesmo dos magistrados e membros do Ministério Público, os quais apenas não poderão ser presos quando da prática de crime afiançável.
Como já mencionado, tanto o art. 33, parágrafo único, da LC 35/79, quanto o art. 41, parágrafo único da Lei 8.625/93 exigem que os autos da investigação sejam remetidos ao chefe da instituição, não concedendo a ele a prerrogativa de decretação da prisão em flagrante, uma vez que tal atribuição é privativa do delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, sendo que o caderno investigatório, após a lavratura do auto, será imediatamente encaminhado.
Tal fato é corroborado pela doutrina ao considerar que o art. 307 do Código de Processo Penal, o qual prevê que o juiz de direito também detém a atribuição de decretar a prisão em flagrante, não foi recepcionado pela Carta Magna de 88, tendo em vista que foi adotado o sistema acusatório, derivando a conclusão de que o juiz não deve participar da colheita de elementos informativos na fase investigatória sob pena de violação do sistema vigente.
Por fim, vale ressaltar que a exigência de comunicação e apresentação imediata em 24 (vinte e quatro horas) tem por fundamento o mesmo das demais prisões em flagrante, qual seja, o de possibilitar o controle da legalidade deste ato administrativo jurisdicional, sendo que tal fato já acontece em todo o país por meio das audiências de custódia acima citadas.
A Polícia Judiciária, no desempenho de sua atividade, é órgão instrumental à propositura de ações penais, exercendo atribuição essencial à função jurisdicional do Estado e à defesa da ordem jurídica. O caráter republicano de sua atuação demonstra claro que durante a investigação criminal, todos devem possuir tratamento isonômico.
Vê-se, ainda, que a atividade do delegado de polícia quanto aos atos de polícia judiciária, na qualidade de operador de direito, e não de mero aplicador, é motivada pela sua livre convicção, respeitados os limites da legalidade. Não por outro motivo que o ministro Celso de Melo[13] asseverou que “o delegado de polícia é o primeiro garantidor da legalidade e da justiça”.
Como registrou o saudoso ministro Teori Zavascki[14], “poderes, prerrogativas e competências são lemes do serviço a destino coletivo da nação. São foros que convidam os consensos à razão, e não cavidades afáveis aos desaforos”. Logo, deve ocorrer o pleno respeito ao ordenamento jurídico, bem como às instituições, garantindo-se, assim, que haja uma “república para os comuns, e não uma comuna de intocáveis”.
Logo, embora seja um tema cujas conclusões não agradem a todos, concluímos ser plenamente possível que o delegado de polícia, no exercício do estrito cumprimento de seu dever legal e ao tomar conhecimento da prática de crimes inafiançáveis por membro do Ministério Público ou do Tribunal de Justiça, decrete a prisão em flagrante e lavre o respectivo auto, providenciando a comunicação, no prazo de 24 horas, ao chefe da respectiva instituição sob pena de responsabilidade.
BIBLIOGRAFIA:
GRECO. Rogério. Atividade policial: aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais – 3ª edição. Niterói, RJ: Impetus, 2011.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. Editora saraiva, 15ª Edição, São Paulo.
LIMA. Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 4ª Ed. 2016. Juspodivm.
MASSON. Nathalia. Manual de Direito Constitucional. 4ª Ed. 2016. Juspodivm.
Manual de Polícia Judiciária – Doutrina, Legislação e Modelos. 6ª ed. rev. e atual. Delegacia Geral de Polícia. 2012.
MEIRELES, HELY LOPES. Direito Administrativo Brasileiro, 42ª edição. São Paulo, Malheiros, 2016. Pág. 310.
ZANOTTI, Bruno Taufner; SANTOS, Cleopas Isaías. Delegado de Polícia em Ação – Teoria e Prática no Estado Democrático de Direito, 2ª Ed. 2016.
http://www2.planalto.gov.br/
http://stf.jus.br/
http://www.stj.jus.br/
NOTAS
[1] Segundo Hely Lopes Meireles, agentes políticos são aqueles que integram os mais elevados escalões na organização Administrativa Pública, possuindo acento na Constituição Federal, possuem independência funcional e regime jurídico próprio. Dentre eles podemos destacar os juízes, promotores, defensores, ministros, conselheiros dos tribunais de contas e os delegados de polícia (Ex. Art. 140, § 3º CE/SP – Aos Delegados de Polícia é assegurada independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária. A independência funcional dos Delegados de Polícia está prevista nas Constituições dos Estados do Espírito Santo, Tocantins, Amazonas, Santa Catarina.). Estendem para estes agentes porque estão previstos na Lei Maior de onde recebem suas atribuições ainda que de forma geral (genérica), também atuam com independência no exercício da função e são dotados de regime jurídico próprio (Direito Administrativo Brasileiro, 42ª edição. São Paulo, Malheiros, 2016. Pág. 310.
[2] LIMA. Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 4ª Ed. 2016. Juspodivm. Pág. 451.
[3] Art. 53, 2º, CF. Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.
[4] Art. 7º, §3º, Lei 8.906/94. O advogado somente poderá ser preso em flagrante, por motivo de exercício da profissão, em caso de crime inafiançável, observado o disposto no inciso IV deste artigo.
[5] Art. 86, §3º, CF. Enquanto não sobrevier sentença condenatória, nas infrações comuns, o Presidente da República não estará sujeito a prisão.
[6] AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ALEGAÇÃO DE INCOMPATIBILIDADE DOS §§ 3. º E 4.º DO ART. 86 DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SERGIPE COM O ART. 22, I, DA CARTA DA REPUBLICA. Normas que, estendendo ao Governador do Estado, sem expressa referência no texto constitucional federal, garantias do Presidente da República como Chefe de Estado, implicam relativização da responsabilidade dos governantes, violando o princípio republicano, conforme decidido na ADI 978, Rel. Min. Celso de Mello. Ressalva do entendimento do Relator. Ação julgada procedente.
[7] Como precedentes podemos citar as prisões em flagrante decretadas pelo Delegado de Polícia em desfavor do ex-Governador do Mato Grosso Silval Barbosa, o Senador Delcídio do Amaral, Prefeito Berg Lima de Bayeux (Paraíba), advogado que tentou ingressar com droga no interior do presídio da Papuda.
[8] Op.cit. Pag. 861
[9] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/Mensagem_Veto/anterior_98/Vep-Lcp-35-79.pdf
[10]http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3059. Ementa: Dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas.
[11] GRECO. Rogério. Atividade policial: aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais – 3ª edição. Niterói, RJ: Impetus, 2011. Pag. 28/29
[12]Manual de Polícia Judiciária – Doutrina, Legislação e Modelos. 6ª ed. rev. e atual. Delegacia Geral de Polícia. 2012. p. 152
[13]HC 84548/SP
[14]AC 4070/DF
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