quinta-feira, 20 de julho de 2017

"A relação entre direito e o paradigma religioso no processo de formação das leis"

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INTRODUÇÃO
Ao longo do processo de formação das sociedades, um fato de clareza solar se torna cada vez mais evidente quando se equipara Direito e Religião: o fato de que há uma congruência tamanha entre ambos, a ponto desta última exercer influência sobre o primeiro, que se torna forçoso perguntar o quão correto está um magistrado ao prolatar um comando sentencial com fundamentação religiosa, qual a linha tênue que separa ambos os lados e como pode ser verificado o pressuposto de validade de uma norma à qual se atribui caráter sagrado, posto que há uma relativização (ou não) dessa norma, em função da cultura e do lapso temporal em que se insere.
Dentre as acusações que pesavam sobre Sócrates, estava a que lhe imputava o crime de não reconhecer os deuses do Estado ateniense. Não caracterizando uma prática passível de penalização branda, a primeira das acusações é a que mais controvérsia causa, ao se verificar que o próprio Sócrates não era um completo descrente das divindades (como será exposto aqui), mas que rejeitou penas alternativas para obedecer estritamente ao que julgava ser correto perante a lei, acreditando derivar esta, inclusive, da vontade divina.
1. O CULTO AOS DEUSES
Em sociedades primitivas, a noção de religião não se aproxima, por dedução óbvia, daquela instituída pelas civilizações mais avançadas. Mas, ao se fazer um estudo acerca da obra A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges, é possível notar, ainda que em análise perfunctória, que boa parte dos costumes e tradições daqueles povos foram incorporadas pelas civilizações ocidentais – algumas delas praticadas até hoje, como, por exemplo, a desigualdade no tratamento de filho e filha, onde os pais dão ao homem uma maior (e prematura) independência em relação à mulher. Não obstante, na obra supracitada, fica claro que a religião é o elemento que estrutura a família. "A religião fez com que a família formasse um corpo nesta e na outra vida. A família antiga é assim uma associação religiosa, mais que uma associação natural" (COULANGES, 1998, p.16).
Ainda nesse sentido, discorre Coulanges acerca da individualidade dessa religião, por parte de cada família, explicitando que "nesta religião primitiva, cada um dos seus deuses não podia ser adorado por mais de uma família. A religião era puramente doméstica" (COULANGES, 1998, p.14). Individualizada, também, era a autoridade sobre cada uma dessas famílias; Papel que cabia exclusivamente ao pater familias, ao exercer os mais distintos poderes no seio de seu lar.
Permite-se inferir, ante o exposto, que a religiosidade dos povos – em sua origem – possui caráter pluralista (na medida em que se adoram vários deuses) e segmentado, ao se verificar uma ramificação de religiões de acordo com as respectivas famílias, individualizando a aplicabilidade das leis daí advindas, para cada uma delas. Isto é tão verdade que, mesmo após a união de várias famílias, os deuses daquela família específica continuarão a serem adorados só, e somente só, por ela. A essência destas doutrinas religiosas não pode ser, portanto, atirada deliberadamente sobre as mais diversas culturas e pessoas, visando converter ideologicamente as distintas camadas.
2. A LEI DOS POVOS ANTIGOS
Aqui, corrobora-se o que foi asseverado no item anterior, visto que as primeiras leis a surgirem eram originadas e fundamentadas na religião. "Os antigos códigos reuniam um conjunto de ritos, de prescrições litúrgicas, de orações e, ao mesmo tempo, de disposições legislativas" (COULANGES, 1998, p.72). O referenciado autor atribui até mesmo a Sólon, cuja reforma representou um passo decisivo para o desenvolvimento da democracia, consolidada posteriormente na legislação de Clístenes, o fato de que sua obra possui ligação com rituais e cultos sagrados, dispondo que
O código das Doze Tábuas, embora mais recente, continha, ainda assim, minuciosas prescrições sobre os ritos religiosos da sepultura. A obra de Sólon era, ao mesmo tempo, código, constituição e ritual; a ordem dos sacrifícios e o preço das vítimas achavam-se ali tão regulamentados como os ritos das núpcias ou o culto dos antepassados (COULANGES, 1998, p.72).
Justamente em função de se proceder à estruturação de códigos arraigados a regras de ordem sacra, é que o vínculo de cidadania vai significar o instrumento através do qual as pessoas de um mesmo culto estão reunidas. No caso, o culto da cidade. Com Atenas isto não será diferente; Em decorrência do vínculo de cidadania, será observada uma profunda aversão ao estrangeiro (xenofobia), por se acreditar que este seria uma mácula à imagem dos cidadãos que ali se encontram reunidos. Mesmo após as reformas de Clístenes, onde se verificou verdadeiramente uma ampliação dos direitos políticos dos cidadãos (homens nascidos livres), a característica predominante da democracia ateniense era que, quando um cidadão ultrapassava os limites da polis, era imediatamente privado de exercer seus direitos políticos.
Como assinala Jones (1997), em sua obra sobre a cultura ateniense, as póleis gregas mantiveram seu sentido de comunidade política através de leis de cidadania escritas e geralmente exclusivas. Atenas tinha leis de cidadania que eram escritas até pelos padrões gregos. Após a lei de cidadania promulgada por Péricles em 451, só os homens que tivessem a mãe e o pai atenienses podiam ser cidadãos. Durante o processo de formação das cidades, o que se percebe é a criação de instrumentos que obriguem a permanência dos cidadãos, em detrimento da presença dos estrangeiros, como, por exemplo, o censo ou a cerimônia da Lustração; Instrumentos, estes, que denotam, inicialmente, um caráter religioso.
O declínio deste tipo de organismo começa quando o homem passa a questionar sobre o porquê de estar sempre cumprindo normas. Estas, por sua vez, sempre apresentam uma qualidade inerente à alguma entidade metafísica; Passa o homem, então, a questionar acerca do sentido de toda essa organização, surgindo, a partir daí, a figura do sofista, que vai, paulatinamente, contribuindo para a mudança da fundamentação religiosa do direito, visando estribar sua concatenação política.
Sócrates, assim como os filósofos antigos, possuía grande apego às leis de seu tempo, pois não as concebia como sendo fruto da atividade humana, mas sim oriundas da natureza divina. Diferentemente do que seus acusadores apontam como crime, Sócrates defende-se utilizando argumentos que o colocam como caluniado e, surpreendendo os jurados que ali se encontravam, juntamente com a população ateniense, afirma que não parte em sua defesa, como era esperado, mas sim em defesa dos cidadãos, alegando que, ao ser condenado, só quem poderia perder com tal fato seria a própria população de Atenas. Sócrates foi acusado por Meleto, Âniton e Lícon de não reconhecer os deuses do Estado, de introduzir novas divindades e de corromper a juventude (MOSSÉ, 1991), primeira acusação da qual quis oferecer defesa.3. O JULGAMENTO DE SÓCRATES
Através de seu método maiêutico, Sócrates pregava que a ignorância deveria ser vista como uma doença do espírito. Seu trabalho restringia-se, dessa forma, a expor a ideia, apenas. Quem deveria encontrar sua própria verdade era seu interlocutor, demonstrando, ademais, o caráter extremamente racionalista, o qual ele tanto defendia. O fato é que
Qualquer manifestação de dúvida ou de indiferença a respeito da religião da cidade era considerada atentado à unidade da comunidade, e não é por acaso que a impiedade, a asebeia, era passível de uma graphaí, de uma ação pública (MOSSÉ, 1991, p.114).
Conforme depreende-se da análise da obra de Justino Romano, o que Sócrates passou não foi mais que uma mera perseguição infundada, justamente por seus opositores alegarem que ele estava a "introduzir novos demônios" na mente juvenil à época. Como segue observação:
Aqueles que, antes de Cristo, tentaram investigar e demonstrar as coisas pela razão, conforme as forças humanas, foram levados aos tribunais como ímpios e amigos de novidades. Sócrates, que mais se empenhou nisso, foi acusado dos mesmos crimes que nós, pois diziam que ele introduzia novos demônios e que não reconhecia aqueles que a cidade considerava como deuses (JUSTINO, 1995, p.4-5).
Sócrates, ao falar aos atenienses, tenta explicar a forma como Meleto se contradiz ao acusá-lo de corremper os jovens, ensinando-os a respeitar outras divindades, mas afirmando, ao mesmo tempo, que Sócrates não acreditava inteiramente em nenhum deus. Como assinala o diálogo de sua Apologia, in verbis:
É claro, segundo a acusação escrita por ti mesmo, que ensino a não respeitar os deuses que a cidade respeita, porém, outras divindades novas. Não dizes que os corrompo, ensinando tais coisas?
- Sim, é isso mesmo que eu digo, sempre que posso.
- Assim, pois, Meleto, por estes mesmos deuses, de que agora está falando, fala ainda mais claro, a mim e aos outros. Não consigo entender se dizes que eu ensino a creditar que existem certos deuses - e em verdade creio que existem deuses, e não sou de todo ateu, nem sou culpado de tal erro - mas não são os da cidade, porém outros, e disso exatamente me acusas, dizendo que eu creio em outros deuses. Ou dizes que eu mesmo não creio inteiramente nos deuses e que ensino isso aos outros?
- Eu digo isso, que não acreditas inteiramente nos deuses (PLATÃO, 1987, p.11).
Werner Jaeger, em sua obra Paideia, trata da perspectiva que se tem de Sócrates, posteriormente, na Idade Média, mostrando que o filósofo, apesar de ser apenas um "nome famoso", possui um importante papel ao contribuir para a criação de uma religião moderna, caracterizando Sócrates, inclusive, como "o apóstolo da liberdade moral", posto que o pai da maiêutica seguia de maneira veemente apenas o que estava de acordo à sua consciência, afastando dogmas e tradições do período helênico, mas não se caracterizando, puramente, um ser avesso aos deuses, como expõe:
É preciso frisar que o Sócrates anti-escolástico não é, exatamente, um anticristo! Bem ao contrário, Sócrates tem agora a missão de conciliar o helenismo com o cristianismo – Jesus Cristo e o homem helênico – e assim ser o protagonista de uma religião, dita moderna (JAEGER, 2003, p.493).
Ainda que se reputasse caluniado, Sócrates, como bem mostram seus discípulos, apresenta-se como um inconteste seguidor das leis, ao se entregar mansamente à sua condenação, tão-somente por assim exigir a lei. Na época, as penas alternativas poderiam conceder ao condenado o exílio, proposta que foi colocada à Sócrates, sendo, impetuosamente, recusada. A aludida pena significaria a perda da cidadania e, ante a realidade que ali se vivia, nada poderia ser mais desonrável que a perda desta. Os textos de Xenofonte – um de seus mais fieis discípulos – mostram um Sócrates temeroso aos deuses, patriota e amigo da juventude, expondo que aquilo que matou seu mestre não foi o envenenamento, mas, em verdade, a inveja de seus acusadores.
Sócrates, como exímio cumpridor das leis, recorre à legalidade ao afirmar que estaria sendo vítima de uma aplicação viciada das mesmas, explanando que "o juiz não toma assento para dispensar o favor da justiça, mas para julgar; ele não jurou favorecer a quem bem lhe pareça, mas julgou segundo as leis" (PLATÃO, 1987, p.20). Ainda assim, dos 501 juízes do tribunal, 280 votaram pela condenação e 221 votaram pela absolvição (MOSSÉ, 1991), o que permite afigurar que o fator religiosidade proporcionou a condenação de maneira mais notável que a legalidade, ao se verificar que duas das acusações eram concernentes ao culto aos deuses e que o filósofo cumpriu sua sentença – abjurando a um plano de fuga já arquitetado por seus seguidores – acreditando que obedecendo às leis, obedecia, voluntariamente, aos deuses.
4. LEGADO HISTÓRICO
Não é possível negar, ante o exposto, que a religião interfira (forte ou brandamente, mediante a conjuntura histórico-política) no processo legislativo da maioria dos povos. Seja no Período Arcaico, quando o homem vive segundo suas crenças; Seja quando se observam os principais institutos dos povos da Mesopotâmia e a formação de seus códigos (Manu, Hamurabi, Esnunna etc.); Na Idade Média, com a criação do corpus iuris canonici, através do qual a Igreja Católica fundamenta todo o ordenamento que desencadeia e alicercia a Dogmática Canônica, até os dias atuais, é factível a constatação de princípios religiosos na estruturação e aplicação do direito, como aponta o Prof. Dr. Urbano Zilles:
Percebemos que a questão do conhecimento de Deus é atual. (...). Apesar dos questionamentos críticos à metafísica tradicional, nos tempos modernos e contemporâneos, a questão de Deus permaneceu como a mais desafiadora e, ao mesmo tempo, a mais interessante para a reflexão filosófica (ZILLES, 1997, p.8 e 12).
Prova disso é que, no cenário jurídico atual, a insurgência da religião em casos relacionados a questões como aborto, relações homoafetivas, drogas e, até mesmo, controle de natalidade, estabelece um regramento paralelo, muitas vezes não condizente com o foro jurídico, culminando em ações viciadas por conta da legalidade cristã que é imposta em determinadas sociedades. É razoável, no entanto, perscrutar acerca da validade de tais ensinamentos, posto que, tanto as instituições evangélicas quanto a instituição eclesiástica mais persuasiva do planeta, se preocupam em transmitir apenas os preceitos divinos que tangem ao bom comportamento do homem, fidelidade, honra e abstinência, estabelecendo (e impondo), dessa forma, a postura de galhardia a que o homem se deve valer.
Sem dúvidas, constam na Bíblia Sagrada alguns dos feitos mais memoráveis de homens ínclitos que viveram à época de Cristo, ou antes dele. Mas há, também, registros de atividades tão contrárias à "lei de Deus", e tão reprováveis aos olhos humanos, quanto as práticas mais pungíveis aos bons costumes internalizados pelas civilizações. A título de exemplo, todos lembram de Davi como sendo um dos grandes reis de Israel, sendo sua história contada aos homens, desde a mais tenra idade, como aquele que enfrentou o mais temido dos filisteus (Golias), pondo fim a uma guerra que se estendia por gerações. Ninguém comenta, no entanto, que Davi mandou seu melhor e mais fiel amigo, Urias, para morrer na guerra, para que pudesse se casar com a esposa dele (BÍBLIA, II Samuel, 11:1-27).
Torna-se imperioso reconhecer, portanto, que, apesar de todo o legado deixado pelos povos antigos, é perigoso se fazer uma interpretação da lei como sendo um aspecto da religião, visto que a historicidade apresenta uma alternância dos princípios religiosos em função da cultura, da temporalidade e da localização geográfica em que estão inseridos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A originalidade da obra de um filósofo perde-se ao serem apregoadas a ela (à obra) ideologias religiosas das mais diversas perspectivas históricas. A genialidade de Sócrates se dava justamente por ele ser visto como um mártir da antiguidade pagã, mantendo seu pensamento enraizado na busca racional da felicidade, o bem maior a ser alcançado. Ao auferir conhecimento, o homem estaria de posse do único instrumento responsável pela sua liberdade moral, ao desencadeamento das ideias que proporcionariam a suspensão de todo o conhecimento parcial que se tem acerca da matéria, ensejando na busca pela verdade na qual se crê, autenticamente.
Não distante disso, deve repousar o entendimento dos aplicadores da lei, atualmente, com vistas a se proceder a uma correta prestação jurisdicional, livre de manifestações compostas de pluralidades religiosas, fixando o Direito como uma instituição social independente e produtiva, pronta a dirimir os distintos interesses da coletividade.
A universalidade significa que ela visa todos os seres humanos, independente de barreiras nacionais, étnicas ou culturais. (...). A autonomia significa que esses seres humanos individualizados são aptos a pensarem por si mesmos, sem a tutela da religião ou da ideologia, a agirem no espaço público e a adquirirem, pelo seu trabalho, os bens e serviços necessários à sobrevivência material (ROUANET, 1993, p.09). (Grifou-se)
O julgamento de Sócrates permite, portanto, que a historiografia jurídica desconfie das controversas relações que se observam entre o Direito e a Religião.
REFERÊNCIAS
BÍBLIA. Português. A Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 6. ed. rev. atual. São Paulo: Editora Geográfica, 2005.
COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Tradução de Fernando de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
JAEGER, Werner. Paideia. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
JONES, Peter V. O mundo Atenas: uma introdução à cultura clássica ateniense. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
JUSTINO. I e II Apologia / Diálogo com Trifão. Trad. Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin. 2. ed. rev. São Paulo: Paulus, 1995.
MOSSÉ, Claude. O processo de Sócrates. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.
PLATÃO. Defesa de Sócrates. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. Coleção "Os Pensadores".
ROUANET, Sergio Paulo. Mal-estar na modernidade: ensaios. 2. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
ZILLES, Urbano. O problema do conhecimento de Deus. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.

Disponível em: http://www.artigonal.com/doutrina-artigos/a-relacao-entre-direito-e-o-paradigma-religioso-no-processo-de-formacao-das-leis-6337184.ht

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