A crise ética e a falta de paradigmas em nossa sociedade contribuem para a eclosão de uma criminalidade violenta. Isso tudo faz com que nos sintamos em franco recuo civilizatório.
Os altos índices de violência no Brasil despertam diferentes reações na sociedade. As pessoas repercutem, por meio da imprensa, eventos sociais, mídias digitais, igrejas, redes sociais etc., a sua “indignação” em relação ao medo generalizado que fora instituído, indistintamente. Nunca foram tão utilizadas as expressões “sensação de insegurança” e “sensação de impunidade”. Em razão disso, ressoam, quase de forma uníssona, os gritos daqueles que defendem a imediata reforma na constituição e na legislação penal brasileiras, de modo a instituir sanções mais graves, introduzindo pena de caráter perpétua, redução da maioridade penal, pena de morte e até a extinção da progressão do regime de cumprimento de pena.
Curiosamente, essas exigências são feitas por aqueles que são lenientes, e até complacentes, para com os “criminosos elitizados”. Eles não se constrangem (aliás, até veem como certo “status”) ao serem fotografados ao lado de políticos criminosos, juízes, empresários, policiais corruptos, que têm contaminado as instituições públicas, transformando-as em apêndices de organizações criminosas.
O Brasil não precisa de leis mais severas para passar por um processo de transformação civilizatória. O discurso das leis penais rigorosas é um embuste criado pelos detentores do poder com a finalidade de desviar a atenção da população. Os cidadãos não têm paradigmas morais ou éticos dos homens políticos. Ao contrário, os governantes e demais ocupantes de outras importantes instituições, como o judiciário, as polícias, as igrejas, são, em verdade, o reflexo negativo que inspira a malandragem, o desejo de tirar vantagem em tudo, o menosprezo às pessoas, a obsessiva procura em ludibriar o próximo, como parâmetro de conceito de “bem-sucedido”.
Os maiores males que deterioram e corroem a sociedade brasileira são o cinismo e a hipocrisia. O que precisamos, como pessoas e como cidadãos, é idealizar e construir, efetivamente, uma mudança de paradigmas, promover uma reavaliação de conceitos, engajando-nos numa transformação de mentalidade, na assimilação dos valores coletivos. Precisamos cultivar a ideia de coletividade, de vida em harmonia, de tolerância com as diferenças, essas virtudes extraordinárias que possibilitam e fazem de nós seres humanos únicos. Acredito que as mazelas que afligem nossas vidas em família e em sociedade não sejam fenômenos isolados.
Tudo é um desencadeamento de circunstâncias e consequências às quais todos estamos inevitavelmente interligados. A violência social decorre da dinâmica de nossa estrutura social, dos vícios de nossas mentalidades egoístas e egocêntricas, do nosso hedonismo, do nosso narcisismo, da nossa indiferença ao próximo e do ódio a quem nos é diferente. Rivalizamos em demasia com nossos semelhantes. Em sociedade, é preciso criar o sentimento de pertencimento, não o do alijamento.
Os indivíduos, como parte que são de um todo orgânico, partículas quânticas que somos, estamos interligados às forças cósmicas do Universo. O discurso do enfrentamento da violência a partir de priorização de gêneros, etnias, opção ou orientação sexual é mais que um erro, é uma tremenda mentira que serve apenas para manter privilégios de um pequeno grupo de espertalhões e coleta de dividendos políticos eleitoreiros demagógicos.
Da forma como está sendo propagada, conseguiremos apenas agravar os embates, a discórdia, o estado de selvageria (“homo hominis lupus”, numa acepção hobbesiana), criando-se categorias com privilégios legislativos e a consequente criação de uma sociedade subdividida em guetos, com inegável estímulo ao dissenso. Isso é flagrante opção pelo simplismo irresponsável e perigoso.
O enfrentamento da violência e a construção dos alicerces de uma sociedade civilizada são questões mais complexas. Entretanto, estamos indo na direção oposta. Por isso, torna-se difícil acreditar que a sociedade brasileira possa alcançar, em um período de tempo razoável, um nível de civilidade satisfatório. O estágio atual e a forma como nos movimentamos como cidadãos abona aquilo que preconizara o antropólogo Claude Lévi-Strauss, segundo o qual “o Brasil é o único lugar que passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização”. Se o vaticínio é um exagero, devemos estar atentos para alguns fenômenos intrínsecos que denotam claramente um retroceder civilizatório.
Os reiterados casos de linchamentos públicos de suspeitos de cometerem crimes, a pretexto de se fazer “justiça com as próprias mãos”; o recrudescimento de rivalidades religiosas, incitadas por líderes religiosos, proprietários de igrejas, em disputas por fiéis incautos e, consequentemente, maior arrecadação financeira; o ódio social ao “diferente”, com renitente clamor para a criação de penas mais severas para os criminosos “clientes” do sistema penal; a produção de leis sectárias e segregacionistas que asseguram privilégios de subgrupos como feministas, homossexuais, negros, índios, imigrantes, prerrogativas de políticos, juízes (aposentadoria compulsória como prêmio ao delinquente togado) etc.
Desta forma, os ideais de uma sociedade fraterna, solidária, igualitária, que cultiva o respeito mútuo, são substituídos por defesas de interesses de castas, desprezando-se as aspirações humanas de construção civilizatória.
Talvez (espero que sim), como sociedade, estejamos bem perto de atingirmos o limite de selvageria que, fatalmente, nos forçará a evoluirmos. Essa saturação, assim como ocorrem com as partículas atômicas, impelir-nos-á a dar início a construção de um novo modelo de vida em sociedade, reinventando-nos como pessoas.
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