José Luciano Gabriel
Resumo: A Filosofia do Direito é obrigatória na formação do estudante de Direito, mas não é raro ver acadêmicos e juristas questionando sobre a razão de ser dessa disciplina, assim como não é raro constatar uma grande resistência ao estudo e ao aprofundamento nessa área. A Filosofia visa contribuir com a formação holística do jurista; busca oferecer um instrumental capaz de viabilizar uma melhor compreensão do universo jurídico e objetiva, enfim, instigar o jurista a pensar o Direito para além dos limites da ciência jurídica e do Direito Positivo. Esse artigo apresenta um sucinto resumo da História da Filosofia e apresenta alguns conceitos possíveis para a Filosofia do Direito.
Palavras-chave: Filosofia. História da Filosofia. Filosofia do Direito. Conceitos de Filosofia do Direito.
Abstract: The philosophy of law is mandatory in the formation of a law student, but it is not uncommon to see lawyers and academics questioning the reason for this discipline, as it is not unusual to find a great resistance to the study and deepening in this area. Philosophy aims to contribute to the holistic formation of a lawyer, intends to offer an instrument capable of achieving a better understanding of the legal universe and objective, finally instigating the lawyer to think the law beyond the limits of legal science. This article presents a brief summary of the history of philosophy and attempts to present some possible concepts for the Philosophy of Law.
Keywords: Philosophy. History of Philosophy. Philosophy of Law. Concepts of Philosophy of Law.
Sumário: Introdução. 1 Filosofia do direito: história e conceitos. 1.1 Breve resgate histórico da filosofia ocidental. 1.2 Filosofia do direito: conceitos.
Introdução
A Filosofia do Direito figura como disciplina do eixo fundamental na formação do profissional do Direito, ou seja, está inserida entre os conhecimentos que constituem a base sobre a qual o jurista irá construir seu edifício jurídico.
De uma forma geral os profissionais das várias carreiras jurídicas, bem como os acadêmicos de Direito, pouco se interessam pelas lições da Filosofia do Direito e a tratam como um peso ou obstáculo que precisa ser superado, já que é conteúdo obrigatório no currículo do curso.
Contudo, por detrás dessa visão predominante, há realidades que podem ser exploradas a fim de trazerem ao acadêmico ou ao profissional do Direito, grandes contribuições para uma leitura mais completa do universo jurídico. Aqueles que conseguem ultrapassar as primeiras barreiras da racionalidade imediatista, experimentam grandes ganhos ao filosofarem sobre o Direito e percebem a importância que essa atitude tem.
Tanto autores, ao escreverem suas obras, como docentes, ao elaborarem seus planos de ensino de Filosofia do Direito, utilizam estratégias variadas e almejam objetivos diferenciados. No entanto, independente dessa diversidade, algumas semelhanças podem ser detectadas quando se pretende diagnosticar a importância da Filosofia no conjunto da formação do profissional do Direito. Essas semelhanças aparecem nas apresentações ou introduções das obras dedicadas a esse conteúdo.
Em 2008 foi sancionada a lei 11.684/08 que determina a presença da Filosofia em todas as séries do Ensino Médio de Escolas Públicas e Particulares de todo o país; há Universidades Públicas e Particulares cobrando explicita ou implicitamente conteúdos de Filosofia em seus vestibulares; o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), na área de “humanidades e suas tecnologias” espera que o candidato saiba vários conteúdos que são específicos de Filosofia ou que estão a ela vinculados de forma interdisciplinar ou transdisciplinar; há uma tendência, especialmente nos exames oficiais de avaliação de cursos ou de etapas da educação formal, em fazer com que as provas sejam mais reflexivas e menos técnicas – o que impõe a necessidade de se ter uma compreensão que integre conhecimentos de várias áreas – e há consenso em dizer que a filosofia tem uma missão especial nesse quesito.
O Direito não fica de fora dessas tendências. Ele, por sua própria natureza, é amplo e interdisciplinar. O jurista não pode prescindir de absorver uma formação que congregue conhecimentos vindos de várias áreas, afinal, o Direito é universal e interfere, direta ou indiretamente, em todas as situações.
Segundo a Resolução 09 de 29 de setembro de 2004 que institui as Diretrizes Curriculares para os Cursos de Graduação em Direito, a Filosofia do Direito figura como uma das disciplinas do eixo de formação fundamental. Trata de uma obrigatoriedade já que a Resolução afirma que as disciplinas ali elencadas devem compor o projeto pedagógico e a organização curricular.
Esse artigo tem o objetivo de demonstrar que há proximidade entre a Filosofia Geral e a Filosofia do Direito, bem como apresentar alguns conceitos possíveis para a Filosofia do Direito.
Do ponto de vista metodológico esse artigo resulta de uma revisão bibliográfica em literaturas de História da Filosofia Geral e manuais de Filosofia do Direito.
O presente artigo faz, portanto, um resgate histórico da filosofia ocidental e apresenta alguns conceitos da Filosofia do Direito, bem como aponta a relação entre Filosofia Geral e Filosofia do Direito. A apresentação resumida de pontos da filosofia geral pretende indicar que durante toda a história do pensamento ocidental, os filósofos se preocuparam com o Direito, mesmo que indiretamente.
1 Filosofia do direito: história e conceitos
1.1 Breve resgate histórico da filosofia ocidental
Ao se colocar em foco a Filosofia do Direito, surge a necessidade de contextualizá-la no cenário da construção histórica do pensamento ocidental; antes de investigar qualquer temática ligada à Filosofia do Direito, é mister trazer à tona, mesmo que de forma sucinta, algo sobre a Filosofia em sentido amplo ou Filosofia Geral.
A Filosofia nasce com o desejo de encontrar respostas capazes de satisfazer uma curiosidade humana alimentada por uma Razão inquieta. As respostas até então existentes estavam fundadas nos mitos e, portanto revestidas de mistérios, forças sobrenaturais e fé; não suportavam questionamentos e usavam o aparato cultural para terem sentido. Ao buscar superar essa metodologia, a Filosofia enfrenta os desafios de desbravar novos caminhos; de enfrentar as tradições e chocar com as verdades já prontas e acabadas.
Essas verdades eram apregoadas prioritariamente através dos mitos que eram transmitidos oralmente de geração para geração. Segundo Japiassú e Marcondes (1989, p. 183), Mito é “narrativa lendária, pertencente à tradição cultural de um povo, que explica através do apelo ao sobrenatural, ao divino e ao misterioso, a origem do universo, o funcionamento da natureza e a origem e os valores básicos do próprio povo”.
Em outras palavras, Mito é uma história que surge no seio da cultura de um povo e que tem a finalidade de explicar as diversas dúvidas existentes, bem como organizar a vida social e possibilitar a perpetuação desse povo.
Os Mitos não se preocupavam com uma explicação que pudesse ser debatida ou reelaborada à luz de novidades. Ao contrário, os Mitos se constituíam como verdades que eram transmitidas de geração para geração, oralmente.
Com o aparecimento da escrita, o uso cada vez mais intenso da moeda, o aumento das relações comerciais nas cidades-estados portuárias gregas, o germe da democracia vivenciado através dos debates nas praças públicas, entre outros fatores, os Mitos começam a se enfraquecer e, aos poucos, surge a possibilidade e a necessidade da Filosofia.
A Filosofia nasce na Grécia antiga, aproximadamente no século VI a. C. e o primeiro filósofo de que se tem notícia é Tales de Mileto. “Todas as coisas são feitas de água, teria dito Tales de Mileto. E assim começam a Filosofia e a Ciência” (RUSSELL, 2001. p. 21). Tales e alguns de seus contemporâneos praticaram uma Filosofia voltada para a compreensão dos fenômenos naturais. Buscaram explicar os fenômenos naturais, que até então eram explicados através dos mitos, usando uma metodologia de cunho predominantemente racional.
Essa busca pela compreensão do que acontece no mundo natural sem se valer de explicações, que extrapolem este mesmo mundo, é a mais importante marca dos primeiros filósofos. Esse desejo de compreender o mundo natural levou os primeiros filósofos a investigarem acerca de algum elemento que desse sustentabilidade à ordem presente no mundo. Assim nasceu a busca pelo arché, um elemento primordial que seria a causa de toda realidade. Um elemento que tivesse presente em tudo, que tivesse gerado tudo e que não tivesse sido gerado por nada. Esse princípio de tudo é insistentemente procurado pelos primeiros filósofos. Segundo Reale e Antiseri (1990a, p. 30), arché pode ser entendido como “a) a fonte e origem de todas as coisas; b) a foz ou termo último de todas as coisas; c) o sustentáculo permanente que mantém todas as coisas (a ‘substância’, poderíamos dizer, usando um termo posterior). Em suma, o “princípio” pode ser definido como aquilo do qual provêm, aquilo no qual se concluem e aquilo pelo qual existem e subsistem todas as coisas”.
Evidentemente a busca por um elemento primordial se faz dentro de um contexto que leva em conta outros pressupostos, tais como a existência de uma lógica de causalidade inerente à ordem natural; o compromisso com o logos (razão informadora do discurso racional); a convicção de que a ordem presente no cosmos era acessível à racionalidade humana. Levando-se em conta esses e outros fatores, a humanidade, representada pelos gregos, abre uma nova forma de compreender e interpretar a vida, a sociedade e o mundo. Surge, assim, o que posteriormente será chamado de Filosofia.
Depois dessa fase introdutória da Filosofia, surge no cenário grego a emblemática figura de Sócrates que inaugura um período novo chamado de Período Clássico. Nesse período aparecem as figuras de Sócrates em permanente oposição aos Sofistas; Platão, idealista, fundador de uma visão metafísica de realidade; e Aristóteles, valorizador do materialismo e da experiência. Para Russell (2001, p. 66), Sócrates, Platão e Aristóteles são as “três maiores figuras da Filosofia Grega”.
A Filosofia Clássica debate amplamente sobre a questão ontológica, metafísica e gnosiológica; discute também sobre os valores que devem ser considerados para a construção de uma sociedade justa e solidária. Nesse ponto, os filósofos se posicionam claramente sobre o conceito de justiça, o papel dos agentes detentores do poder político e até dão orientações sobre os princípios fundantes da vida social.
Para Mondim (1982a, p. 46), dos seguidores do pensamento socrático, podemos extrair três tendências oriundas do próprio Sócrates: a moral (Xenofonte); a metafísica e as difíceis preocupações com o ser (Platão) e a postura de um filósofo que ensina doutrinas (Aristóteles).
Platão se destaca como filósofo de perspectiva idealista. Para ele, a compreensão Racional da Ideia é o caminho que leva ao conhecimento da realidade, da verdade; Aristóteles, por sua vez, valoriza o conhecimento de natureza sensível, material. Pode-se dizer que esses dois filósofos estabeleceram as bases sobres as quais a Filosofia Ocidental construiu todo seu edifício teórico.
Encerrado o período áureo da Filosofia Grega, o grande movimento filosófico que o sucede é a chamada Filosofia Medieval de caráter cristão. Os medievais, imersos na atmosfera cristã e envolvidos nos novos cenários de organização sócio-política-econômica vigentes, se ocuparam predominantemente dos temas cristãos. Não há dúvida das riquezas dessa época, mas a diversidade temática não foi marcante. Russell (2001, p. 170) não faz rodeios para dizer que “a filosofia se converteu num ramo do saber destinado a justificar o domínio do cristianismo [...]”.
A característica mais marcante da Filosofia Medieval foi, em função da força da instituição religiosa cristã, o teocentrismo. Pode-se dizer que o filósofo medieval pratica uma reflexão filosófica que parte de Deus, passa por Deus e de algum modo chega a Deus.
“A filosofia que se produziu durante toda a Idade Média está intimamente ligada, em suas origens à expansão do cristianismo. Os maiores representantes do pensamento medieval foram cristãos fervorosos [...] que procuraram conciliar os métodos filosóficos dos gregos aos ensinamentos da fé cristã, para refletir sobre o mundo e o ser humano dentro de uma perspectiva teocêntrica (CHALITA, 2005, p. 99)”.
Dois grandes movimentos marcaram a Filosofia Medieval: a Patrística e a Escolástica. A Patrística pode ser ilustrada pela figura de Santo Agostinho “que sistematizou todo o pensamento católico que vinha sendo construído” (INCONTRI e BIGHETO, 2008, p. 375). Na Filosofia Patrística se destaca a defesa da doutrina cristã, nas palavras de Japiassú e Marcondes (1996, p. 208) pode-se ler: “A Patrística surge quando o cristianismo se difunde e se consolida como religião de importância social e política, e a Igreja se firma como instituição, formando-se então a base filosófica da doutrina cristã, especialmente na medida em que esta se opõe ao paganismo e às heresias que ameaçam sua própria unidade interna. Predominam assim os textos apologéticos em defesa do cristianismo”.
A Escolástica “caracteriza-se principalmente pela tentativa de conciliar os dogmas da fé cristã e as verdades reveladas nas Sagradas Escrituras com as doutrinas filosóficas clássicas” (JAPIASSÚ e MARCONDES, 1996, p. 87). O principal representante da Escolástica é Santo Tomás de Aquino.
É comum se dizer que Santo Agostinho cristianizou o pensamento de Platão, enquanto Santo Tomás de Aquino cuidou de fazer o mesmo com Aristóteles. Vale registrar os dizeres de Rezende (2002, p. 96) quando aborda essa relação dos pensadores medievais com os gregos clássicos: “Enquanto Platão foi o filósofo que mais diretamente influiu no pensamento de Santo Agostinho, a presença marcante da filosofia de Aristóteles é o que caracteriza o pensamento de Santo Tomás. O mesmo trabalho realizado por Santo Agostinho ao cristianizar a filosofia platônica foi feito por Santo Tomás em relação à filosofia aristotélica”.
Do ponto de vista histórico, a Idade Média durou em torno de um milênio, mas um conjunto de fatores levou ao enfraquecimento das estruturas constituídas e construídas ao longo de todo esse tempo e, a partir do século XIV, várias transformações levaram ao fim do império medieval e possibilitaram o surgimento de novas concepções de mundo e de homem.
No lugar do teocentrismo, característica marcante do pensamento medieval, surge uma forte supervalorização do homem, que passa a ocupar o centro das atenções. E esse homem é portador de uma Razão confiável o bastante para poder descartar toda e qualquer realidade que não se harmonizava com as ideias e com os valores encampados por essa Razão.
Para Lamanna, [s. d.] citado por Mondim (1982b, p. 8) pode-se dizer o seguinte da Modernidade que nascia com o final do pensamento medieval: “O mundo moderno caracteriza-se justamente pelo oposto: não mais teocentrismo, nem autoritarismo eclesiástico, mas autonomia do mundo da cultura em relação a todo fim transcendente;livre explicação da atividade que o constitui ; supremacia da evidência racional na procura da verdade; consciência do valor absoluto da pessoa humana e afirmação do seu poder soberano sobre o mundo”.
Entre outras, podem ser citadas duas temáticas marcantes da Filosofia Moderna: a busca de compreensão da origem social do homem e a consequente lógica que poderia legitimar o exercício do poder político – tema trabalhado pelos contratualistas; e o problema do conhecimento. De que forma pode o homem chegar ao conhecimento da verdade: através da Razão ou da Experiência? Esse tema é trabalhado por racionalistas e empiristas, conforme se lê no texto abaixo: “Há, inicialmente na Filosofia, duas vertentes sobre a questão do conhecimento: o racionalismo e o empirismo. O Racionalismo e o Empirismo expressam em comum a preocupação fundamental face aos problemas do conhecimento, ponto de referência básico da Filosofia Moderna (MEIRO, 2011, p. 01)”.
Todos os esforços Modernos encontram seu ápice no Iluminismo que inspirou os ideais da Revolução Francesa. Essa Revolução icnográfica serve como referência para a compreensão de vários dos elementos presentes nas organizações sociopolíticas atuais e marca, segundo critérios historiográficos clássicos, o fim da modernidade e o início da Contemporaneidade.
Na Filosofia Contemporânea, diferente do que se verifica nos momentos anteriores, não se pode estabelecer uma linha temática que a perpassa, aliás, filosoficamente falando, o Período Contemporâneo se caracteriza por uma pluralidade de interesses e indagações que fazem com que Filosofia só possa ser compreendida à luz das correntes ou escolas dentro das quais se manifestam os pensamentos e os pensadores. Cada Escola ou Corrente filosófica tem seu objeto, suas metodologias, suas convicções, seus pontos de partida, suas conclusões.
“Uma das principais características de toda a Filosofia do século XX é a desconfiança nos grandes sistemas de pensamento que pretendem dar conta de toda a realidade,como eram o idealismo alemão e o materialismo histórico de Marx. A Filosofia se tornou mais recatada em suas intenções [...]. Por isso ela se tornou multifacetada, com tendências particulares e difíceis de serem mapeadas (INCONTRI e BIGHETO, 2008, p. 406)”.
Toda essa viagem pela História do Pensamento Ocidental revela que não é recente a preocupação do Homem com a arte de pensar seus pensamentos. A Filosofia é o compromisso de pensar o pensamento. De pensar aquilo que o pensamento produz. A história está repleta de tentativas de compreender de forma mais profunda, completa e complexa as concepções que o homem tem de si mesmo, do mundo em que vive, da sociedade a que pertence, dos valores que deseja ver perpetuar.
Na medida em que o Direito é uma realidade produzida pela razão humana, na medida em que ele é um ser cultural (GALVES, 2002, p. 21) ele também é objeto especialmente pensado pela Filosofia, o que leva à percepção de que pode e deve haver uma Filosofia do Direito.
Pode-se dizer que uma das relações da Filosofia com o Direito passará pela tentativa de avaliar, de sopesar a atuação do Direito frente à sociedade a fim de contribuir para que ele, o Direito, busque os aprimoramentos possíveis e necessários ao alcance de sua primordial meta: organizar, de forma razoável, a sociedade administrando de modo equânime as divergências de interesses dos indivíduos que compõem a sociedade.
Uma leitura atenta da História do Pensamento do Ocidente revela que mesmo que o tema Direito não estivesse sendo explicitamente abordado, desde os primórdios da reflexão filosófica, temas muito intimamente ligados a ele o foram, o que faz com que o Direito tenha sido indiretamente pensado pela história da Filosofia. Quando Platão propõe os pilares de uma república ideal; quando Aristóteles estabelece parâmetros para um comportamento ético; Hobbes indica os moldes do Pacto Social; Locke conclui que o poder emana do povo; quando Maquiavel prescreve conselhos ao Príncipe; Kant debate sobre os valores na Metafísica dos Costumes; Hegel descortina os pilares de uma Filosofia do Direito ou quando Harent investiga sobre a origem do totalitarismo, está o Direito, de alguma forma, sendo pensado e influenciado. Está o Direito sendo, mesmo que indiretamente, objeto ou destinatário de reflexões filosóficas.
Assim sendo, na História da Filosofia podem ser encontradas diversas reflexões filosóficas que aproveitam ao Direito, mesmo porque, partindo da ideia de que o fim do Direito é a Justiça e a Justiça (independente das elucubrações filosóficas feitas a seu respeito) é uma expectativa dos homens de todas as épocas, em todos os seus períodos a Filosofia se preocupou com ela e, consequentemente, com o Direito. Ilustra bem essa afirmação as palavras de Cretella Junior (1993, p. 5): “O problema da justiça que é a força motriz que impulsiona o Direito é, no fundo, problema eminentemente e, por excelência, filosófico”.
As palavras de Del Vecchio (2006, p. 11) corroboram com esse entendimento:
“A história da Filosofia do Direito, especificamente, nos mostra, antes de tudo, que em todo tempo se meditou sobre o problema do direito e da justiça, o qual, em verdade, não foi artificiosamente inventado, mas corresponde a uma necessidade natural e constante do espírito humano. Todavia, a Filosofia do Direito, em sua origem, não se apresenta autônoma, mas mesclada à Teologia, à Moral, à Política”.
Mas em que consiste a Filosofia do Direito propriamente dita? Essa pergunta será enfrentada no próximo tópico.
1.2 Filosofia do direito: conceitos
O que é Filosofia do Direito?
Essa pergunta é inevitável, e mesmo que pareça irônico, já é uma pergunta filosófico-jurídica, ou seja, já se começa a fazer Filosofia do Direito quando se questiona a respeito do que seja Filosofia do Direito.
Praticamente todos os autores que se debruçam sobre o objeto jurídico com a finalidade de extrair dele uma leitura filosófica acabam buscando uma resposta para essa pergunta. De alguma forma, esse caminho acaba se tornando inevitável, pois, ao se perguntar sobre o conceito de Filosofia do Direito, o pensador estabelece critérios e bases que organizam e delimitam seu trabalho filosófico.
Galves (2002, p. 1) responde a essa pergunta de forma direta, mas muito abrangente, para ele, “Filosofia do Direito é o estudo das questões fundamentais do Direito como um todo. Fundamentais, por que se trata, ao pé da letra, do alicerce, das questões básicas, sobre cujas soluções se ergue todo o edifício do Direito. Como um todo, porque se trata de questões cujas soluções empenham todo o corpo do Direito, e, por isso, interessam todos os ramos em que se divide a ciência jurídica”.
Nesse conceito, aparentemente modesto, veem-se dois critérios exigidos da atividade filosófica: a necessidade de amplitude e a necessidade de profundidade. Uma reflexão filosófica precisa ser ampla, global, ou seja, deve ser um “tipo de reflexão totalizante, de conjunto, porque examina os problemas relacionando os diversos aspectos entre si” (ARANHA e MARTINS, 2009, p. 21). Evidentemente o conceito em análise indica que essa totalidade buscada pela reflexão filosófica deve estar direcionada ao Direito, de maneira que o Filósofo do Direito esteja comprometido com a busca de uma visão unitária e ampla do universo jurídico.
O outro critério, a profundidade, pressupõe a busca das raízes mais profundas de seu objeto de estudo, pois “a filosofia é radical, não no sentido corriqueiro de ser inflexível – nesse caso seria antifilosófica! –, mas porque busca explicitar os conceitos fundamentais usados em todos os campos do pensar e do agir” (ARANHA e MARTINS, 2009, p. 20).
Voltada para o Direito é certo que a Filosofia deve comprometer-se com a busca das fundamentações daqueles elementos que dão sustentabilidade ao edifício jurídico. Levando-se em conta essa metáfora da construção civil, sem boas bases, sem fundações confiantes e bem feitas, nenhuma construção estaria a salvo.
Outro conceito é apresentado por Reale (2002, p. 9), para quem a Filosofia do Direito “é a própria Filosofia enquanto voltada para uma ordem de realidade, que é a ‘Realidade Jurídica’”. Para esse autor, a Filosofia do Direito não é uma disciplina específica, mas o que se chama de Filosofia do Direito é o exercício completo da Filosofia voltado para o objeto Direito.
Decorre desse conceito que a atividade Filosófica, quando voltada para o Direito, leva consigo toda a tradição e força que vem da Filosofia Geral. Reale (2002, p. 9) conclui sobre a filosofia do Direito que “nem mesmo se pode afirmar que seja Filosofia especial, porque é a Filosofia, na sua totalidade [...]”. De alguma forma, para esse autor não há como falar de independência absoluta da Filosofia do Direito, o que se pode falar é de Filosofia voltada para o Direito, ou seja, a Filosofia do Direito, mesmo vista com certa autonomia tem vínculos com a Filosofia Geral.
Na mesma linha de raciocínio, está o pensamento de Cretella Junior (1993, p. 4) para quem a Filosofia do Direito “é parte da Filosofia”. O filósofo do direito deve tratar das questões pertinentes ao Direito, mas é indispensável que ele tenha conhecimento da Filosofia.
“Não é possível abordar o estudo filosófico do direito ou do Estado, ou seja, a filosofia jurídica, no seu mais amplo sentido, sem se ter já um certo conhecimento prévio da problemática e do próprio movimento do pensamento filosófico geral e da sua história. A filosofia do direito não é uma disciplina jurídica ao lado de outras; não é sequer, rigorosamente, uma disciplina jurídica. É uma atividade mental ou ramo da filosofia que se ocupa do direito [...] (CRETELLA JUNIOR, 1993, p. 4)”.
A atividade do Filósofo do Direito é um desdobramento da atividade Filosófica propriamente dita, de maneira que se reconhece a necessidade de um conhecimento prévio da História e das temáticas da Filosofia Geral para se aprofundar na Filosofia do Direito.
Há, porém, quem, ao buscar conceituar, levante dúvidas em relação à tese de que a Filosofia do Direito seja parte da Filosofia Geral. É o caso de Bittar e Almeida (2001, p. 39). Para esses pensadores, essa afirmação é muito grave, embora não intimide a maioria dos autores que se dedica ao estudo da Filosofia do Direito.
A fundamentação da gravidade alegada vincula-se a uma divisão da Filosofia do Direito em duas modalidades: Filosofia Jurídica implícita e Filosofia Jurídica explícita. A primeira é a Filosofia do Direito que pode ser encontrada ao longo de toda a História do Pensamento Ocidental. Foi construída pelos filósofos que se aventuraram a compreender a realidade de forma ampla, dentro da qual está o Direito.
A Filosofia do Direito explícita é a que começa a ocorrer a partir do momento que se tem o desejo de filosofar o fenômeno Direito de forma autônoma e intensa. É como se a Filosofia do Direito ganhasse status de uma ciência independente e autônoma.
Reale (2002, p. 286) explicita essa situação da seguinte forma: “Parece-me, pois, que cabe distinguir entre uma Filosofia Jurídica implícita, que se prolonga, no mundo ocidental, desde os pré-socráticos até Kant, e uma Filosofia Jurídica explícita, consciente da autonomia de seus títulos, por ter intencionalmente cuidado de estabelecer fronteiras se seu objeto próprio nos domínios do discurso filosófico. O Surgimento da Filosofia do Direito como disciplina autônoma foi resultado de longa maturação histórica, tornando-se uma realidade [...] na época em que se deu a terceira fundação da Ciência Jurídica ocidental, isto é, a cavaleiro dos séculos XVIII e XIX”.
Parece que, embora Reale entenda, como visto acima, que há necessidade de conhecimento da Filosofia Geral para se penetrar no campo da Filosofa do Direito, esta se constitui como ramo autônomo. Ora, se é ramo autônomo, pode-se entender também que não é parte da Filosofia Geral.
Pode parecer que há aqui uma contradição. A Filosofia do Direito é uma disciplina autônoma ou é parte da Filosofia Geral?
Levando-se em conta o pensamento de Reale, verifica-se que a Filosofia do Direito (a partir do século XVII) possui autonomia no que concerne a seu objeto de estudo, de maneira que pode desenvolver sua história sem esperar que os filósofos especialistas se posicionem acerca de seus temas. Mas essa autonomia não é uma isenção para o Filósofo do Direito prescindir de conhecimentos filosóficos (metodologia, técnicas, lógica, história do pensamento etc.) quando se propõe à realização de seu trabalho jurídico-filosófico, ao contrário, a Filosofia do Direito precisa exalar o mesmo espírito e a mesma identidade que desde os primórdios caracteriza a Filosofia Geral como saber autônomo. Precisa estar comprometida com a busca da Verdade; o amor ao saber; o descortinar da realidade; com a procura incessante da luz que combate as sombras da construção racional. Sendo assim, pouco importa a querela em questão.
Outro autor que indica uma independência da Filosofia do Direito da filosofia geral é Gusmão (2004, p. 7). “A Filosofia do Direito foi, até Hegel, objeto dos filósofos, depois, dos juristas”. Mas o autor também entende que essa independência não é absoluta, pois a filosofia do direito “supõe uma Filosofia, que lhe serve de ponto de partida e de base”.
Os conceitos de Filosofia do Direito surgem então, a partir dessas tentativas de encontrar a identidade dessa área do saber. Pode-se dizer que Filosofia do Direito é a tentativa de pensar o Direito de forma ampla, profunda e crítica. Ou que Filosofia do Direito constitui-se como a arte de buscar os porquês que rodeiam o Direito. Não importa. Cada conceito trará à tona algo que revela as concepções filosóficas de seu autor.
Cretella Junior (1993, p. 7) se deu conta disso quando buscou conceituar Filosofia do Direito em seu livro. Primeiro percebeu que “a problemática de conceituação da Filosofia do Direito envolve, antes de mais nada, inúmeras indagações a respeito da filosofia”. Percebeu que a conceituação, como já mencionado acima, já é um trabalho filosófico. Assim optou por adotar a seguinte estratégia: “Tratando-se, pois, de conceituar a filosofia do direito, o critério que se impõe como válido, neste particular, é o de se tomar como ponto de partida várias definições de filosofia e, em seguida, transportá-las com as necessárias adaptações para o âmbito da filosofia do direito (CRETELLA JUNIOR, 1993, p. 8)”.
Em outras palavras, o que o autor se propôs a fazer foi trabalhar alguns critérios conceituais consagrados pela História da Filosofia e lê-los segundo as necessidades e/u possibilidades da Filosofia do Direito e do próprio Direito, a saber.I) O critério nominal entende a filosofia a partir do significado etimológico, amor ao saber. A filosofia se constitui como sendo uma busca apaixonada pelo conhecimento, pela sabedoria. Ao ser aproveitado pelo filósofo do Direito, esse conceito indica que “a Filosofia do Direito é o amor ao saber jurídico, é a preocupação profunda e constante com o fenômeno jurídico” (CRETELLA JUNIOR, 1993, p. 9).
II) Para o critério global a Filosofia se preocupa com a busca de uma explicação global para os fenômenos e, de certa forma, foge de explicações particulares ou isoladas daqueles objetos por ela pensados. Seguindo essa conceituação, a Filosofia do Direito buscaria uma explicação global do fenômeno jurídico, buscaria uma cosmovisão do Direito. Vale a pena aprender com os ensinamentos de Cretella Junior (1993, p. 10) acerca desse conceito: “Desse modo, ao invés de estudar este ou aquele fenômeno jurídico isolado, a filosofia do direito se empenha em explicar o direito como sistema total, em que o todo e as partes se inter-relacionam. A filosofia do direito é a “scientia universalis” do mundo jurídico, a “scientia altior” da Jurisprudência”.
III) Critério causal: para este, a filosofia é a arte de buscar as causas primeiras. Esse conceito vem da tradição aristotélica e é ratificado pela filosofia cartesiana. Mas o que significa buscar as causas?
Do ponto de vista filosófico, a busca das primeiras causas vincula-se à busca das explicações mais originais possíveis da realidade. Buscar a causa é buscar a origem que potencializa a compreensão clara e evidente da realidade investigada ou pensada. Para a Filosofia do Direito, esse conceito levaria “ao estudo dos institutos jurídicos por seus primeiros princípios. É a procura da causa primeira dos institutos da ciência do Direito (CRETELLA JUNIOR, 1993, p. 11).
IV) Para o critério dos postulados, a Filosofia consiste na permanente crítica aos postulados das ciências particulares. As ciências não estão comprometidas com o questionamento dos pontos referencias de partida. Ao cientista compete desenvolver seu trabalho, sua pesquisa sem indagar aquele ponto que lhe é dado como certo, como fundamento para sua atividade. “É com esses postulados, entretanto, que o filósofo trabalha, procurando o fundamento das coisas, criticando, por insuficientes, as soluções obtidas pelas ciências particulares e chegando a um grau de generalização e abstração não conseguido pelos cultores das várias ciências (CRETELLA JUNIOR, 1993, p. 12)”.
Ora, a Filosofia do Direito se volta para o Direito, segundo esse conceito buscando o questionamento dos postulados que mantém cada uma das ciências particulares do direito. Nas palavras de Cretella Junior (1993, p. 13): “A filosofia do direito deixa de ser expositiva e passa a ser crítica, penetrando, primeiro, na denominação e conceito de cada disciplina jurídica, depois na razão de ser de cada instituto jurídico, problematizando-o e indagando da legitimidade de seu suporte último. Filosofia do direito é o estudo crítico dos postulados em que repousam os institutos típicos dos diferentes ramos em que se subdivide a ciência jurídica; é a crítica dos postulados das ciências particulares do Direito”.
V) Por fim, o critério axiológico leva a filosofia a assumir uma postura valorativa da vida. O filósofo, visto sob esse prisma, cuida de pensar e repensar as experiências humanas e estabelecer uma leitura crítico-valorativa dessas experiências. Evidentemente, não trata de uma postura moralista, mas da tentativa de avaliar de forma crítica o universo dos valores necessários à preservação equilibrada da sociedade humana. “Transplantada esta colocação para o campo da Filosofia do Direito, vemos esta disciplina como o estudo crítico-valorativo da experiência jurídica” (CRETELLA JUNIOR, 1993, p. 13).
Como se vê, conceituar filosofia do direito é tarefa árdua e pressupõe a consideração de vários elementos que acabam por revelar as convicções e as tendências teóricas e ideológicas que o pensador traz consigo.
Não há um conceito certo em detrimento de outro que esteja errado. Não se pode dizer que haja um conceito que seja completo em detrimento de outros que sejam deficitários. Não se trata de buscar um conceito que consiga traduzir a generalidade da investigação da Filosofia do Direito; que seja de tal forma abrangente para não deixar nada de fora, mesmo porque uma convicção assim tem grandes chances de ser anti-filosófica.
Não se trata, é evidente, de fugir do desafio de conceituar, já que lidar com a Filosofia do Direito impõe esse desejo de desvelar sua face, de identificá-la, mas trata de não ter a pretensão de ser, aquele que conceitua, o dono da verdade. O conceito de Filosofia do Direito precisa ser um conceito aberto, um conceito em construção, que respeite a dinamicidade do próprio Direito e da vida. Um conceito que lide bem com essa grande metamorfose perpétua que é o Direito. Um bom conceito de Filosofia do Direito precisa ser ousado, forte, vanguardista, mas despretensioso.
Essas dicas não foram seguidas sempre por todos os filósofos do Direito, mas é uma indicação útil para o estudioso dessa área porque o prepara para enfrentar a diversidade e a divergência de opiniões, um dos principais combustíveis e produtos da reflexão filosófica do Direito.
Conclusão
Desde seu surgimento a filosofia prezou pela busca de soluções bem fundamentadas para as perguntas que incomodavam as pessoas; sempre tentou nutrir-se com a convicção de que as respostas encontradas deveriam ser tratadas como prováveis e não como absolutamente certas e acabadas.
Em todas as épocas, sempre existiram pessoas e instituições que celebraram a mesmice e fizeram o pacto da perpetuação das estruturas e verdades que receberam, e o fizeram sem se darem ao trabalho de questionar ou de perguntar acerca dos porquês das coisas. Essas posturas são, via de regra, anti-filosóficas porque fecham as portas que oxigenam o espírito.
A História da Filosofia e a tentativa de conceituar Filosofia do Direito oferecem ao jurista e ao acadêmico de Direito a oportunidade de tratar o Direito de forma mais complexa e completa, afinal, uma área que mexe com todos os setores da vida humana não pode ser reduzida à mera técnica ou a um conhecimento restrito, periférico e superficial.
Referências
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