segunda-feira, 24 de julho de 2017

A função transformadora e de libertação do direito para Luiz Fernando Coelho

Por Márcio Berclaz

A função transformadora e de libertação do direito para Luiz Fernando Coelho
O paranaense Luiz Fernando Coelho é um jusfilósofo que não pode ser ignorado ou mesmo desconhecido pelas novas gerações (e a descoberta pode iniciar pelo acesso ao seu currículo lattes. Seu saber jurídico, que marcou espaço na UFPR, na PUC-PR e na UFSC – embora não seja aproveitado com a intensidade devida pelas instituições na atualidade – felizmente ainda circula para quem tem o privilégio de lhe ouvir em aulas, palestras, conferências e congressos (um deles o congresso internacional do IVR – Internacional Association for Philosophy of Law and Social Philosophy). Para que não reste dúvida do alcance prognóstico do seu pensamento, para ficar apenas num exemplo, frise-se que já no distante final dos anos 70, o Professor Coelho previa a importância que seria assumida pela “informática jurídica” e os efeitos das “expressões semióticas da linguagem formalizada  no computador”.
No ensino da teoria e da filosofia do direito nos anos 70, como bem lembra outro grande e saudoso Luis, o genial argentino Luis Alberto Warat, Coelho foi uma das vozes mais importantes pregadores a fornecer soro e cobrar vigília e militância frente ao sono e veneno puro do positivismo estreito e dogmático. Luiz Fernando Coelho foi um dos precursores da busca da interdisciplinaridade do saber jurídico e seu pensamento influenciou  de algum modo o posterior movimento do direito alternativo, como também reconhece Warat.
Luiz Fernando Coelho começa a romper com a ideia de que a teoria crítica do direito seria apenas uma contestação das outras teorias dogmáticas existentes ao apresentar e propor, em 1982, como tese para concurso de Professor da UFPR, seus próprios postulados teóricos. O mesmo Coelho teve papel importante no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina, fundado pelo seu leal companheiro acadêmico Paulo Henrique Blasi (1929-2013),tanto que foi por este programa foi merecidamente homenageado. Uma das marcas de Luiz Fernando Coelho é ter feito sua tese de Doutorado e ter atingido sua livre docência procurando integrar de algum modo a lógica e a hermenêutica (tema: “Lógica Jurídica Concreta na perspectiva do normativismo dialético”). Não por acaso, também, Coelho foi orientador de destacados nomes contemporâneos do universo jurídico, dentre os quais Celso Luiz Ludwig (A alternatividade jurídica na perspectiva da libertação: uma leitura a partir da filosofia de Enrique Dussel e Formas da razão: racionalidade jurídica e fundamentação do direito), Clémerson Merlin Clève (“O direito e os direitos: uma introdução à análise do direito contemporâneo) e Vladimir Passos de Freitas (Direito Administrativo e Meio Ambiente).
Enquanto a obra “Lógica Jurídica e Interpretação das leis” explicitou o normativismo dialético, a lógica, a hermenêutica e a interpretação dogmática e zetética, fazendo um percurso competente dos diferentes tipos de realismo com os seus expoentes, entre outras virtudes e temas, a “Teoria Crítica do Direito” (edições publicadas pela HDV, Sergio Fabris e atualmente pela Juruá), divide-se em três partes: pensamento crítico, pensamento crítico no direito e teoria crítica no direito, apresentando pressupostos metodológicos, vertentes, categorias e importantes referenciais
Mais do que ninguém, Coelho reconhece a permanente tensão entre a legislação que vige e as exigências de justiça material, sob pena do celebrado instrumental jurídico servir como mero aparato de opressão e repressão.
Para Coelho, a crítica do direito é aquela que não se contenta com as soluções tradicionais e ideológicas que o senso comum teórico oferece aos problemas do direito e da justiça, que, longe de serem campos ideiais do dever ser, são problemas sociais reais, palpáveis e concretos, daí a necessidade de uma aplicação do direito diferenciada, um aplicação do direito que, epistemologicamente, como ensina Bachelard, antes e de se contentar com pouco, com a mera descrição, saiba  questionar, romper para prospectivamente buscar a “construção” de novas e melhores hipóteses, enfim, implementar um efetivo “corte epistemológico” com o ideal, atividade e busca sempre incompleta e permanente.
Nas palavras de Luiz Fernando Coelho, “a tese fundamental da teoria crítica do direito é que o direito não é passado que condiciona o presente, mas o presente que constrói o futuro”, especialmente porque há uma realidade dialética no fenômeno jurídico relacionando fato à norma, uma intersubjetividade que não pode ser negada.  Na sua concepção, é preciso problematizar as respostas do saber jurídico tradicional para questionar a própria situação social sobre a qual o direito incide. Ruptura e superação são requisitos fundamentais para que se possa falar em crítica, pois é a teoria crítica que leva o jurista a pensar que “o direito não foi feito para manter teorias, mas para promover socialmente o homem concreto”, partindo-se de um dado para chegar a um construído.
No seu resumo de sua complexa teoria, preocupada com os fins do direito e com as necessidades da vida, distanciada do fetiche da lei e mais amoldada a uma concepção pluralista do direito, dentre outros aspectos, cumpre destacar alguns pontos fundamentais para compreensão da sua importante contribuição:
1)Legitimidade social: articulação do pensamento jusfilosófico tradicional com os processos sociopolíticos de legitimação da ordem social, com a pesquisa do fato social, como tomada de consciência com preocupação ética, afinal a realidade não pode ser definida normativamente como se fosse algo preexistente ao direito; uma coisa é a ordem jurídica, outra é a norma social, devendo o direito ser interpretado e aplicado longe do fetichismo conceitual dos pandectistas, mas de modo compromissado com a realidade social e com as necessidades da vida, como ferramenta de transformação em favor da “grande massa de povo que permanece marginalizada das conquistas da civilização”;
2)Dimensão ideológica: reconhecimento da dimensão ideológica do direito como campo minado pela ideologia,  que é um dado necessario e ineludível do jurídico construtor de imaginários, mitos (neutralidade, igualdade perante a lei, completude do ordenamento, racionalidade, primado da lei sobre outras fontes etc) e significados indevidos para seus institutos, representações muitas vezes alheias às realidades e necessidades humanas que negam realização de valores propriamente humanos mesmo diante de uma sociedade cheia de gritantes  contradições;
3)Concreção dialética: antes de ser norma fria e abstrata, há uma concreção dialética e culturalista na aplicação do direito, um plano zetético do direito a exigir uma teorização focada no plano social e valorativo, ocupada do plano empírico, integrada aos novos paradigmas da ciência, preocupada, mais do que aplicar a lei, em fazer justiça, algo melhor e menos ruim da ordem que aí está; é preciso que as novas concepções do que seja a ciência influenciem a pesquisa e a forma de conhecer e de aplicar o direito, que depende dos outros ramos do saber para constituir algo melhor do que a realidade mostra.
4)Educação jurídica: somente esta permite que o jurista, na sua práxis cotidiana, bem compreenda e assimile o seu papel de construir um mundo mais humano, no qual o direito não seja dominação, mas sim instrumento de mediação que o qualifique como  abrigo e o refúgio das reivindicações sociais no espaço do conflito, já que o contexto ontológico do direito não deve(ria) olvidar o ser social.
Por fim, para que a proposta seja bem entendida: o direito não se resume a uma função legitimadora de uma ordem social posta a ser conservada, dele se exigindo uma função transformadora, de verdadeira “libertação”. Nas palavras de Coelho: “a tese fundamental da nova filosofia é que o direito existe, não para manter a ordem, mas para transformá-la, e que a ciência do direito existe, não para constatar uma ordem imanente, revelada nas instituições, mas para transformá-la”. Ao invés de um direito que, como hoje, conserva privilégios classistas, a proposta de Luiz Fernando Coelho desafia um direito transformador, como, aliás, por força do disposto na Constituição de 1988, já manda o Estado Democrático de Direito.

Márcio Berclaz é Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Doutorando em Direito das Relações Sociais pela UFPR (2013/2017), Mestre em Direito do Estado também pela UFPR (2011/2013). Integrante do Grupo Nacional de Membros do Ministério Público (www.gnmp.com.br) e do Movimento do Ministério Público Democrático (www.mpd.org.br). Membro do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL) da UFPR. Autor dos livros “Ministério Público em Ação (4a edição – Editora Jusvpodium, 2014) e “A dimensão político-jurídica dos conselhos sociais no Brasil: uma leitura a partir da Política da Libertação e do Pluralismo Jurídico (Editora Lumen Juris, 2013)

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