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segunda-feira, 3 de outubro de 2016
A polêmica sobre a natureza jurídica ao art. 28 da Lei 11.343/06
Luiz Flávio Gomes * Alice Bianchini
Introdução
O Usuário de drogas:
A polêmica sobre a natureza jurídica do art. 28 da nova lei de drogas (Lei 11.343/2006), mesmo diante do entendimento firmado pela Primeira Turma do STF no sentido de que se trata de um "crime" punido com penas alternativas, sendo o usuário, portanto, um "tóxicodelinqüente" (RE 430.105-9-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 13.02.07), certamente ainda não chegou ao seu final. Resumindo as principais correntes de pensamento em relação a esse assunto temos o seguinte: (a) o art. 28 faz parte do Direito penal e é "crime" (STF, RE 430.105-9-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 13.02.07); houve mera despenalização, não se podendo falar em abolitio criminis; (b) o art. 28 pertence ao Direito penal, mas não constitui "crime", sim, uma infração penal sui generis (Luiz Flávio Gomes); houve descriminalização formal e ao mesmo tempo despenalização, mas não abolitio criminis; (c) o art. 28 não pertence ao Direito penal, sim, é uma infração do Direito judicial sancionador (Alice Bianchini), seja quando a sanção alternativa é fixada em transação penal, seja quando imposta em sentença final (no procedimento sumaríssimo da lei dos juizados), tendo ocorrido descriminalização substancial (ou seja: abolitio criminis). 2. Posição e voto do Ministro Sepúlveda Pertence: "RE do Ministério Público, em matéria criminal, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que julgou ser o Juizado Especial o competente para o processo e julgamento de crime de uso de drogas, previsto à época dos fatos no art. 16 da L. 6.368/76 (f. 114/120). Alega-se violação dos 2º; 5º, XL; e 98, I, todos da Constituição, sob o fundamento de que, ao contrário do afirmado pelo acórdão recorrido, o art. 2º, par. único, da L. 10.259/01, nos casos de competência da Justiça estadual, não ampliou o conceito de crime de menor potencial ofensivo previsto no art. 61 da L. 9.099/95. Dada a superveniência da L. 11.343/06 (art. 28), submeto à Turma questão de ordem relativa à eventual extinção da punibilidade do fato (C. Penal, art. 107, III). É o relatório. V O T O O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE - (Relator): Parte da doutrina tem sustentado que o art. 28 da L. 11.343/06 aboliu o caráter criminoso da conduta anteriormente incriminada no art. 16 da L. 6.368/76, consistente em "adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine a dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar". Dispõe o art. 28 da L. 11.343/06, verbis: "Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. §1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica. §2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. §3º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses. §4º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses. §5º A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas. §6º Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a: I - admoestação verbal; II - multa. § 7º O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado." A controvérsia foi bem exposta em artigo do Professores Luiz Flávio Gomes e Rogério Cunha Sanches (GOMES, Luiz Flávio; SANCHES, Rogério Cunha. Posse de drogas para consumo pessoal: crime, infração penal "sui generis" ou infração administrativa? Disponível em: http://www.lfg.com.br. 12 dez. 2006), do qual segue um extrato, verbis: "Continua acesa a polêmica sobre a natureza jurídica do art. 28 da Lei 11.343/2006 (nova lei de drogas), que prevê tão-somente penas alternativas para o agente que tem a posse de drogas para consumo pessoal. A questão debatida é a seguinte: nesse dispositivo teria o legislador contemplado um crime, uma infração penal sui generis ou uma infração administrativa? A celeuma ainda não chegou a seu final. Os argumentos no sentido de que o art. 28 contempla um crime são, basicamente, os seguintes: a) ele está inserido no Capítulo III, do Título III, intitulado "Dos crimes e das penas"; b) o art. 28, parágrafo 4°, fala em reincidência (nos moldes do art. 63 do CP e 7° da LCP e é reincidente aquele que, depois de condenado por crime, pratica nova infração penal); c) o art. 30 da Lei 11.343/06 regulamenta a prescrição da posse de droga para consumo pessoal. Apenas os crimes (e contravenções penais) prescreveriam; d) o art. 28 deve ser processado e julgado nos termos do procedimento sumaríssimo da lei dos juizados, próprio para crimes de menor potencial ofensivo; e) cuida-se de crime com astreintes (multa coativa, nos moldes do art. 461 do CPC) para o caso de descumprimento das medidas impostas; f) a CF de 88 prevê, no seu art. 5º, inc. XLVI, penas outras que não a de reclusão e detenção, as quais podem ser substitutivas ou principais (esse é o caso do art. 28). Para essa primeira corrente não teria havido descriminalização, sim, somente uma despenalização moderada. Para nós, ao contrário, houve descriminalização formal (acabou o caráter criminoso do fato) e, ao mesmo tempo, despenalização (evitou-se a pena de prisão para o usuário de droga). O fato (posse de droga para consumo pessoal) deixou de ser crime (formalmente) porque já não é punido com reclusão ou detenção (art. 1º da LICP). Tampouco é uma infração administrativa (porque as sanções cominadas devem ser aplicadas pelo juiz dos juizados criminais). Se não se trata de um crime nem de uma contravenção penal (mesmo porque não há cominação de qualquer pena de prisão), se não se pode admitir tampouco uma infração administrativa, só resta concluir que estamos diante de infração penal sui generis. Essa é a nossa posição, que se encontra ancorada nos seguintes argumentos: a) a etiqueta dada ao Capítulo III, do Título III, da Lei 11.343/2006 ("Dos crimes e das penas") não confere, por si só, a natureza de crime (para o art. 28) porque o legislador, sem nenhum apreço ao rigor técnico, já em outras oportunidades chamou (e continua chamando) de crime aquilo que, na verdade, é mera infração político-administrativa (Lei 1.079/1950, v.g., que cuida dos "crimes de responsabilidade", que não são crimes). A interpretação literal, isolada do sistema, acaba sendo sempre reducionista e insuficiente; na Lei 10.409/2002 o legislador falava em "mandato" expedido pelo juiz (quando se sabe que é mandado); como se vê, não podemos confiar (sempre) na intelectualidade ou mesmo cientificidade do legislador brasileiro, que seguramente não se destaca pelo rigor técnico; b) a reincidência de que fala o § 4º do art. 28 é claramente a popular ou não técnica e só tem o efeito de aumentar de cinco para dez meses o tempo de cumprimento das medidas contempladas no art. 28; se o mais (contravenção + crime) não gera a reincidência técnica no Brasil, seria paradoxal admiti-la em relação ao menos (infração penal sui generis + crime ou + contravenção); c) hoje é sabido que a prescrição não é mais apanágio dos crimes (e das contravenções), sendo também aplicável inclusive aos atos infracionais (como tem decidido, copiosamente, o STJ); aliás, também as infrações administrativas e até mesmo os ilícitos civis estão sujeitos à prescrição. Conclusão: o instituto da prescrição é válido para todas as infrações (penais e não penais). Ela não é típica só dos delitos; d) a lei dos juizados (Lei 9.099/1995) cuida das infrações de menor potencial ofensivo que compreendem as contravenções penais e todos os delitos punidos até dois anos; o legislador podia e pode adotar em relação a outras infrações (como a do art. 28) o mesmo procedimento dos juizados; aliás, o Estatuto do Idoso já tinha feito isso; e) o art. 48, parágrafo 2°, determina que o usuário seja prioritariamente levado ao juiz (e não ao Delegado), dando clara demonstração de que não se trata de "criminoso", a exemplo do que já ocorre com os autores de atos infracionais; f) a lei não prevê medida privativa da liberdade para fazer com que o usuário cumpra as medidas impostas (não há conversão das penas alternativas em reclusão ou detenção ou mesmo em prisão simples); g) pode-se até ver a admoestação e a multa (do § 6º do art. 28) como astreintes (multa coativa, nos moldes do art. 461 do CPC) para o caso de descumprimento das medidas impostas; isso, entretanto, não desnatura a natureza jurídica da infração prevista no art. 28, que é sui generis; h) o fato de a CF de 88 prever, em seu art. 5º, inc. XLVI, penas outras que não a de reclusão e detenção, as quais podem ser substitutivas ou principais (esse é o caso do art. 28) não conflita, ao contrário, reforça nossa tese de que o art. 28 é uma infração penal sui generis exatamente porque conta com penas alternativas distintas das de reclusão, detenção ou prisão simples. A todos os argumentos lembrados cabe ainda agregar um último: conceber o art. 28 como "crime" significa qualificar o possuidor de droga para consumo pessoal como "criminoso". Tudo que a nova lei não quer (em relação ao usuário) é precisamente isso. Pensar o contrário retrataria um grave retrocesso punitivista (ideologicamente incompatível com o novo texto legal). Em conclusão: a infração contemplada no art. 28 da Lei 11.343/2006 é penal e sui generis. Ao lado do crime e das contravenções agora temos que também admitir a existência de uma infração penal sui generis." II A tese de que o fato passou a constituir infração penal sui generis implica sérias conseqüências, que estão longe de se restringirem à esfera puramente acadêmica. De imediato, conclui-se que, se a conduta não é crime nem contravenção, também não constitui ato infracional, quando menor de idade o agente, precisamente porque, segundo o art. 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente (L. 8.069/90), considera-se "ato infracional" apenas "a conduta descrita como crime ou contravenção penal". De outro lado, como os menores de 18 anos estão sujeitos "às normas da legislação especial" (CF/88, art. 2281; e C.Penal, art. 27(2) - vale dizer, do Estatuto da Criança e do Adolescente (L. 8.069/90, art. 104(3) -, sequer caberia cogitar da aplicação, quanto a eles, da L. 11.343/06. Pressuposto o acerto da tese, portanto, poderia uma criança - diversamente de um maior de 18 anos -, por exemplo, cultivar pequena quantidade de droga para consumo pessoal, sem que isso configurasse infração alguma. Isso para mencionar apenas uma das inúmeras conseqüências práticas, às quais se aliariam a tormentosa tarefa de definir qual seria o regime jurídico da referida infração penal sui generis. III Estou convencido, contudo, de que a conduta antes descrita no art. 16 da L. 6.368/76 continua sendo crime sob a lei nova. Afasto, inicialmente, o fundamento de que o art. 1º do DL 3.914/41 (Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei de Contravenções Penais) seria óbice a que a L. 11.343/06 criasse crime sem a imposição de pena de reclusão ou detenção. A norma contida no art. 1º do LICP - que, por cuidar de matéria penal, foi recebida pela Constituição de 1988 como de legislação ordinária(4) - se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção. Nada impede, contudo, que lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime - como o fez o art. 28 da L. 11.343/06 - pena diversa da "privação ou restrição da liberdade", a qual constitui somente uma das opções constitucionais passíveis de serem adotadas pela "lei" (CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII). IV De outro lado, seria presumir o excepcional se a interpretação da L. 11.343/06 partisse de um pressuposto desapreço do legislador pelo "rigor técnico", que o teria levado - inadvertidamente - a incluir as infrações relativas ao usuário em um capítulo denominado "Dos Crimes e das Penas" (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30). Leio, no ponto, o trecho do relatório apresentado pelo Deputado Paulo Pimenta, Relator do Projeto na Câmara dos Deputados (PL 7.134/02 - oriundo do Senado), verbis (www.camara.gov.br): "(...) Reservamos o Título III para tratar exclusivamente das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas. Nele incluímos toda a matéria referente a usuários e dependentes, optando, inclusive, por trazer para este título o crime do usuário, separando-o dos demais delitos previstos na lei, os quais se referem à produção não autorizada e ao tráfico de drogas - Título IV. (...) Com relação ao crime de uso de drogas, a grande virtude da proposta é a eliminação da possibilidade de prisão para o usuário e dependente. Conforme vem sendo cientificamente apontado, a prisão dos usuários e dependentes não traz benefícios à sociedade, pois, por um lado, os impede de receber a atenção necessária, inclusive com tratamento eficaz e, por outro, faz com que passem a conviver com agentes de crimes muito mais graves. Ressalvamos que não estamos, de forma alguma, descriminalizando a conduta do usuário - o Brasil é, inclusive, signatário de convenções internacionais que proíbem a eliminação desse delito. O que fazemos é apenas modificar os tipos de penas a serem aplicadas ao usuário, excluindo a privação da liberdade, como pena principal (...)." Não se trata de tomar a referida passagem como reveladora das reais intenções do legislador, até porque, mesmo que fosse possível desvendá-las - advertia com precisão o saudoso Ministro Carlos Maximiliano -, não seriam elas aptas a vincular o sentido e alcance da norma posta. Cuida-se, apenas, de não tomar como premissa a existência de mero equívoco na colocação das condutas num capítulo chamado "Dos Crimes e das Penas" e, a partir daí, analisar se, na Lei, tal como posta, outros elementos reforçam a tese de que o fato continua sendo crime. De minha parte, estou convencido de que, na verdade, o que ocorreu foi uma despenalização, entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade. O uso, por exemplo, da expressão "reincidência", não parece ter um sentido "popular", especialmente porque, em linha de princípio, somente disposição expressa em contrário na L. 11.343/06 afastaria a incidência da regra geral do C.Penal (C.Penal, art. 12: "As regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso"). Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, do rito processual estabelecido para os crimes de menor potencial ofensivo(5), possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata de pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, §§1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do 107 e seguintes do C.Penal (L. 11.343/06, art. 30(6). Assim, malgrado os termos da Lei não sejam inequívocos - o que justifica a polêmica instaurada desde a sua edição -, não vejo como reconhecer que os fatos antes disciplinados no art. 16 da L. 6.368/76 deixaram de ser crimes. O que houve, repita-se, foi uma despenalização, cujo traço marcante foi o rompimento - antes existente apenas com relação às pessoas jurídicas e, ainda assim, por uma impossibilidade material de execução (CF/88, art. 225, §3º(7); e L. 9.605/98, arts. 3º; 21/24(8) - da tradição da imposição de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva de toda infração penal. Esse o quadro, resolvo a questão de ordem no sentido de que a L. 11.343/06 não implicou abolitio criminis (C.Penal, art. 107, III). V De outro lado, à vista do art. 30 da L. 11.343/06, que fixou em 2 anos o prazo de prescrição da pretensão punitiva, reconheço, desde logo, a extinção da punibilidade dos fatos. Os fatos ocorreram há mais de 2 anos (f. 78v e ss.), que se exauriram sem qualquer causa interruptiva da prescrição. Perdeu objeto, pois, o recurso extraordinário que, por isso, julgo prejudicado: é o meu voto". 3. Posição e pensamento de Luiz Flávio Gomes O Min. Sepúlveda Pertence, no seu longo e sempre respeitável voto, já (bem) sintetizou nossa posição sobre o assunto. Para nós o art. 28 pertence ao Direito penal, mas não constitui "crime", sim, uma infração penal sui generis. Houve descriminalização formal e ao mesmo tempo despenalização, mas não abolitio criminis. Em outras palavras: a conduta do usuário continua sendo penalmente punível. Tem implicações penais e não revogou o art. 16 da antiga lei de tóxicos. Mas tratar o usuário, depois do novo contexto legislativo advindo com a Lei 11.343/2006, como "criminoso", como "tóxico-delinqüente", não nos parece o melhor caminho. A pecha de "criminoso" ao usuário de drogas significa um grave retrocesso, enorme distanciamento da política européia de redução de danos e não coopera, em absolutamente nada, para seu processo de recuperação ou de reinserção social. Se o fato punido com reclusão ou detenção é "crime" e se esse mesmo fato quando punido com prisão simples ou multa é uma "contravenção penal", como admitir que o menos, ou seja, como admitir que o fato punido com sanções mais brandas do que prisão simples (esse é o caso do art. 28) seja "crime". O fato punido com pena menor que a da contravenção é reputado como crime. Isso nos parece muito paradoxal! De outro lado, cabe considerar o seguinte: a diferenciação entre o crime e a contravenção pela pena cominada não é uma questão puramente formal. O conteúdo da sanção (prisão), por força do princípio da proporcionalidade, nos conduz obrigatoriamente a sustentar mais exigências para a configuração de um crime. Hoje isso se resolve pela tipicidade material que, como novo requisito do fato típico, requer: juízo de reprovação da conduta (RoxinFrisch), resultado jurídico desvalioso (Zaffaroni, L. F. Gomes etc.) e imputação objetiva do resultado (Roxin). Quando o fato conta com punição mais branda que jamais conduz o agente para a prisão não há dúvida que podem ser flexibilizadas as exigências materiais da tipicidade. Como se nota, o nível, a natureza e a intensidade da pena têm tudo a ver com a própria natureza e grau de exigências da infração penal. Em outras palavras: a graduabilidade do injusto penal (Paliero) tem total correspondência com a graduabilidade da sanção penal. No atual sistema penal brasileiro, de outro lado, se o agente pratica contravenção antes e crime depois não é considerado reincidente. Ora, seguindo-se o pensamento da Primeira Turma do STF, se o sujeito praticar o art. 28 antes e um crime depois, será reincidente (desde que haja sentença final condenatória em relação ao art. 28). Quem pratica o mais (contravenção + crime) não é reincidente; quem pratica o menos (art. 28 + crime) seria reincidente. Nisso vemos outro paradoxo! De nada adianta, de outra parte, conceber o usuário como "criminoso" ou "tóxicodelinqüente" se todos sabemos que as conseqüências que lhe podem alcançar (por força na nova lei) destoam completamente disso. O juiz sabe que nada pode fazer contra ele em termos coativos (imperativos). A dureza nominal ("criminoso") não se corresponde com a realidade. Denominar o art. 28 de "crime", portanto, pode significar a banalização deste conceito no Direito penal. Passamos a ter um "crime" com conseqüências pífias (inexpressivas) caso o infrator não cumpra as sanções impostas pelo juiz. A nova lei banalizou a função do juiz (deveria ter adotado em relação ao usuário a desjudicialização); o STF, com a devida vênia, acaba de banalizar o conceito de "crime". Por fim, o que mais impressionou o Min. Pertence, para refutar nossa tese da infração penal sui generis, foi o ECA, que em seu art. 103 considera como ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal. Se o fato (posse de droga para uso próprio do menor) fosse considerado sui generis, não haveria possibilidade de se lhe impor nenhuma sanção (porque nem é crime, nem contravenção). O argumento pode ser superado com certa facilidade. Há dois caminhos para isso: (a) o primeiro reside nos artigos 98, III e 101 do ECA (que me foram recordados por Rogério Sanches): cabe tanto contra criança quanto em relação ao adolescente medidas de proteção "em razão da sua conduta". No artigo 101 há um rol enorme de medidas que seriam totalmente pertinentes para essa criança ou adolescente: encaminhamento aos pais ou responsáveis, orientação, apoio e acompanhamento temporários, inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família ou à criança ou ao adolescente, requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, inclusão em programas de auxílio a toxicômanos etc.; (b) o segundo consiste em admitir em relação ao art. 103 uma interpretação extensiva (e, ao mesmo tempo, progressiva), que é possível em Direito penal, mesmo contra o réu, quando a intenção do legislador resulta inequívoca (bastaria ler no art. 103 crime, contravenção ou infração penal sui generis). O principal argumento utilizado pelo Ministro Pertence para concluir que o usuário de drogas comete "crime" está vinculado ao ECA, ou seja, ao menor que tenha posse de drogas para consumo pessoal. De acordo com a decisão da Primeira Turma do STF (RE 430.105-9-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 13.02.07) só se pode impor medidas sócioeducativas ao menor quando ele comete uma infração penal, isto é, crime ou contravenção. Se o art. 28 não retrata nenhum crime nem tampouco uma contravenção, os menores ficariam impunes. Esse argumento não pode prosperar. Enfocando-se o art. 28 como infração penal sui generis vê-se que se trata de infração penal, logo nada impederia a incidência do ECA. Quando o ECA fala em crime ou contravenção devemos adotar interpretação extensiva e progressiva para hoje ler crime, contravenção ou infração penal sui generis. Diante de tudo quanto foi exposto, desta feita não dá para concordar com nosso Emérito Mestre Pertence. 4. Posição e pensamento de Alice Bianchini O art. 28 não pertence ao Direito penal, sim, é uma infração do Direito judicial sancionador, seja quando a sanção alternativa é fixada em transação penal, seja quando imposta em sentença final (no procedimento sumaríssimo da lei dos juizados). Houve descriminalização substancial (ou seja: abolitio criminis). Para dar sustentabilidade a essa tese podem ser invocados os seguintes argumentos: (a) não obstante o art. 28 da Lei 11.343/2006 encontrar-se inserido no capítulo denominado "Dos crimes e das penas", em alguns dos dispositivos legais, quando se faz referência às conseqüências a serem impostas ao usuário (art. 28, III, art. 28, § 1º; art. 28, § 6º e art. 29), a mesma Lei fala em "medidas" ou "medidas educativas"; (b) duas das conseqüências previstas no art. 28 (advertência e encaminhamento a programas educativos) não possuem nenhuma carga aflitiva, ao contrário, têm natureza puramente educativa. A outra (prestação de serviço à sociedade) possui duplo caráter (educativo e repressivo); (c) nenhuma das conseqüências quando aplicadas em razão de transação penal (art. 48, § 5º) gera reincidência ou antecedentes, ou seja, impostas em transação penal não geram nenhuma conseqüência relacionada com o Direito penal; (d) normalmente a concretização de uma transação penal impede que outra seja feita no lapso de cinco anos. Mas essa regra não vale para o caso do usuário, que conta com disciplina própria e pode levar adiante várias transações penais, mesmo dentro daquele período de cinco anos (art. 28, § 4º); (e) havendo descumprimento da transação ou da sentença condenatória as únicas medidas cabíveis são: admoestação verbal ou multa (art. 28, § 6º). Isso evidencia, de modo patente, que todas as medidas impostas ao usuário de drogas refogem da estrutura e da sistematização do Direito penal; (f) a qualquer tempo elas podem ser substituídas, ouvidos o MP e o defensor (art. 27). Isso reforça o caráter educativo ou ressocializador dessas medidas; (g) a natureza jurídica da sentença condenatória (no caso de não ter havido transação penal) é idêntica à da proferida em ação de improbidade administrativa, isto é, não se trata de sentença condenatória que produza efeitos penais, sim, de sentença que gera outras conseqüências, típicas do Direito judicial sancionador; (h) o fato de a sentença ser emanada de um juiz criminal não é suficiente para conduzir à conclusão de que a sentença é de natureza penal. O juiz criminal não está impedido de contar com competências em outras áreas. A Lei 11.340/06 (Violência contra a mulher), com efeito, prevê a possibilidade de o juiz criminal tratar de questões cíveis (no caso de medidas protetivas de urgência), sem que isso venha a desvirtuar a natureza de suas decisões (Lei 11.340/06, art. 33); (i) cada sentença possui os efeitos jurídicos que são dados pela lei ou pela Constituição. No caso do usuário de drogas criou-se toda uma disciplina jurídica específica, que diverge completamente do ordenamento jurídico geral; (j) a fixação da competência do JECRIM em relação ao usuário de drogas é ato de discricionalidade legislativa. Ela é razoável (já que deixa ao encargo do judiciário a classificação uso/tráfico, de acordo com os parâmetros estabelecidos no art. 28, § 2º) e não contraria nenhuma norma constitucional; (l) concluindo tratar-se de posse de drogas para o consumo pessoal, tendo em vista que não houve a legalização da conduta, mas sim a sua descriminalização (abolitio criminis), realmente devem ser estabelecidas conseqüências ao usuário, as quais podem ser aceitas desde logo por ele (transação) ou estabelecidas pelo magistrado (em sentença condenatória); (m) em qualquer das hipóteses as conseqüências possíveis são de natureza educativa; (n) isso se constata facilmente quando se percebe que duas delas (admoestação e encaminhamento a programas educativos) são voltadas exclusivamente para o próprio usuário, na busca de fazer com que ele possa superar a sua condição; a outra (prestação de serviço à comunidade), ainda que não voltada diretamente para a reeducação do usuário, possui, como já dito, natureza híbrida (cunho educacional e cunho repressor). É importante destacar que a prestação de serviço deve ser cumprida em local que se ocupe, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas (art. 28, § 5º); (o) não obstante o art. 28 encontrar-se inserido em um capítulo denominado "Dos crimes e das penas", ele faz parte do Título I da Lei, que trata "Das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas". As medidas de repressão somente são encontradas no Título seguinte e são dirigidas, exclusivamente, à produção e ao tráfico de drogas; (p) a preocupação com a prevenção, a atenção e a reinserção social do uso indevido é a marca distintiva da nova Lei. Ela rompe com as anteriores por tratar a fundo essas questões, dedicando, inclusive, a ela, trinta dos seus setenta e cinco artigos; (q) dentre tantos outros aspectos preventivos, pode ser lembrado a criação do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad, o qual não se coaduna com o discurso anterior de "combate às drogas". Até o nome que comumente tem-se usado ao fazer referência à nova Lei ("Nova Lei Anti-drogas") encontra-se equivocado, já que a tônica, agora, no que se refere às drogas, desloca-se do "combate" para privilegiar a prevenção; (r) a aplicação das medidas preventivas de não-uso, retardamento do uso e redução de danos previstas na Lei (arts. 20 a 26) são, por natureza, incompatíveis com a idéia de criminalização do uso. O mesmo se diga em relação ao tratamento. Várias dessas estratégias, para melhor alcançar seus resultados, necessitam da colaboração do usuário, o que, dificilmente se conseguiria, caso houvesse a rotulação do usuário como criminoso. A partir de tal preocupação poder-se-ia evitar a transformação do tóxico-dependente em tóxico-delinqüente; (s) para que uma conduta venha a ser considerada crime, há que ofender de forma grave, concreta, intolerável e transcendental um bem jurídico relevante (Luiz Flávio Gomes). É sabido que o usuário de drogas acaba por alimentar o comércio ilícito. Se não houvesse demanda não haveria oferta. No entanto, tal situação não é suficiente para se criminalizar o uso. É fato também que as pessoas degradam o meio ambiente quando utilizam determinados produtos (a utilização doméstica de inseticidas é um bom exemplo). Isso, entretanto, não faz com que tal conduta venha a ser objeto de criminalização; (t) no caso do usuário de drogas, seu comportamento causa uma afetação a um bem jurídico pessoal (saúde individual). Nessas situações, o Direito penal não se encontra legitimado a atuar, sob pena de desrespeito a direitos fundamentais da pessoa humana, no caso, autonomia e liberdade. São as chamadas zonas livres do Direito penal (Arthur Kaufmann), que se constituem em áreas de contenção jurídico-penal, nas quais as decisões são deixadas ao alvedrio das consciências dos envolvidos, impondo-lhes conseqüências distintas das penais, quando violada a norma; (u) tudo o que acaba de ser exposto evidencia que em relação ao usuário de drogas algumas conseqüências são pertinentes, de qualquer maneira elas hão de se distanciar do direito repressivo, por lhes faltar requisito(s) legitimador(es);[1] (v) é razoável, assim, que o uso de drogas fique circunscrito ao âmbito do Direito judicial sancionador. 5. Conclusão final É bem provável que a polêmica em torno da natureza jurídica do art. 28 da Lei 11.343/2006 ainda não chegou ao seu final. De qualquer modo parece que o Supremo Tribunal Federal (Primeira Turma) não seguiu (no RE 430.105-9-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 13.02.07) o melhor caminho, ao considerar o usuário de drogas como "criminoso" ou "tóxico-delinqüente". Tudo o que a Lei nova não queria era exatamente isso, posto que está voltada (em relação ao usuário) para uma política de prevenção e de redução de danos. 1.Cf. BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: RT, 2002. * Doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito penal pela USP, Secretário-Geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), Consultor e Parecerista, Fundador e Presidente da Rede LFG – Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina - Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais – Disponível em: < http://www.wiki-iuspedia.com.br/article.php?story=20070312085358240 >. Acesso em: 18 mar. 2008
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