A presunção de inocência é tema que, além de ser objeto da preocupação permanente da cidadania, tem hoje viva atualidade, por força de eventos que estão na ordem do dia. Digo sempre que gostaria de falar sobre o tema aos leigos, divulgando-o, porque advogados, regra geral, são capazes de compreender todas as minhas preocupações, até porque muitos participam dessas preocupações a respeito do princípio, cuja compreensão é introduzida por uma indagação: em que condição se encontra, no seu curso, o réu de um processo penal? O que ele é aí? É suspeito? Culpado? Inocente? Afinal, qual sua condição jurídica?
Em torno dessa ambiguidade, ou perplexidade, é que gira a temática do princípio da chamada presunção de inocência, que, em última instância, traduz, na tentativa de dar racionalidade ao ius puniendi, manifestação exemplar do conflito clássico entre autoridade e liberdade, entre Estado e cidadão, e cuja arqueologia nos ajuda a entender, não apenas o conceito, mas sobretudo o alcance, nem sempre bem entendido na sua inteireza, deste princípio capital.
E, nessa arqueologia, isto é, na reconstituição histórica da sua evolução, não podemos deixar de lembrar três momentos importantes sempre relevados pelos estudiosos. O primeiro deles é marcado pela disposição do art. 9, IX, da Declaração do Homem e do Cidadão, da Revolução de 1789, e que, em larga medida, foi, na esteira do movimento reformista da jurisdição penal, inspirada pelo iluminismo e pela mais famosa obra de um dos grandes teóricos da dogmática penal, o qual escreveu um pequeno livro – no tempo em que se escrevia pouco para dizer muito –, conhecido de todos, Dei Delitti e Delle Pene.
Falo de Cesare Bonesana Beccaria, ou Marquês de Beccaria. A importância da obra pode ser sentida ao fato de, datada de 1764, ter sido, já em 1766, traduzida para o francês, em seguida para outras línguas, de modo que seus pensamentos, sintetizando o ideário iluminista de rebelião contra as opressões da concepção de um processo imperial no sentido estrito da palavra, se difundem com surpreendente rapidez, a ponto de repercutir na Rússia, cuja imperatriz Caterina II o convida, nessa época, a visitar Moscou para supervisionar projeto do seu sistema penal. Beccaria recusou-o, é verdade, mas o convite em si é muito significativo da importância de sua obra.
A disposição desse art. 9.º, de cujo texto advém o nome histórico pelo qual passou a ser divulgado o princípio, ou mais precisamente, entre nós, a regra constitucional, começa com o seguinte enunciado: “Tout homme étant présumé innocent,...” Sem transcrevê-la toda, dispõe, em tradução larga, que, como todo homem se presume inocente até que seja declarado culpado, se antes for preciso agir contra ele, as medidas que devam ser tomadas não podem ser excessivas, senão que os excessos devem ser reprimidos severamente pela lei.
O que significou essa norma importante da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão? Significou a assunção, pela legislação revolucionária, de uma das relevantes ideias que Beccaria sintetizou naquele pequeno livro, como reação contra as arbitrariedades do uso do processo penal pelo soberano, e que eram admitidas pela lei, suposto não legítimas, tais como torturas, suplícios, como meios de obtenção de provas, admissão de meia culpa, prisões para averiguação sem prazo, sem limite, nem controle algum. Eram tão abusivas, que, em 1760, Luis XVI baixou decreto que extinguiu as torturas e os suplícios como meios de obtenção de prova, exceto para os casos em que o réu fosse acusado de crime contra o rei.
O que expressava o feitio desse processo penal? Um tratamento degradante e desumano do réu, porque o processo era instrumento do arbítrio e da atuação política do poder real. E Beccaria, como todos sabemos, pregava exatamente os princípios que hoje estão consagrados no nosso direito penal, em particular no modelo acusatório do processo penal. Este foi o primeiro momento histórico em que se manifesta, no plano legislativo, a ideia da presunção de inocência.
O segundo momento é não menos importante e dá-se particularmente na Itália, no entrechoque das posturas dogmáticas das três conhecidas escolas penais, sobre o objeto e o método do direito penal, e a primeira das quais era a chamada Escola Clássica, cujo grande idealizador e divulgador foi Carrara, no seu conhecido Programma, aliás traduzido para o português por Azevedo Franceschini, que foi juiz presidente do extinto Tribunal Criminal de São Paulo.
Tal Escola, que adotava o método lógico abstrato, pregava, em síntese, o seguinte: o direito penal serve para punir os criminosos, para punir os culpados. Mas o processo penal, não; o processo penal serve para tutelar o réu inocente, garantir a liberdade do cidadão. O cerne da Teoria do Processo estava, pois, na sua visão de garantia da presunção de inocência, sem a qual objetivo último do processo penal estaria comprometido. Tratava-se, portanto, da concepção liberal do processo penal, ou seja, de sua modelagem ideológica.
Contra essa concepção, e, sobretudo, em decorrência da inquietação social provocada pelos primeiros problemas de ordem criminal trazidos pela Revolução Industrial, hoje exasperados no contexto da chamada sociedade de risco e nas reações do direito penal do inimigo, surge outra escola, que, como resposta do positivismo àqueles incipientes reclamos sociais, sustentava devesse a concepção do processo penal dar prevalência à defesa social, à defesa da sociedade contra os criminosos.
Suas formulações guardavam algumas particularidades que é mister recordar: primeiro, baseava-se, vamos dizer assim, numa motivação nacionalista, mas, em especial, na crença de determinismo biológico, e cujo grande expoente foi outro Cesare, o Lombroso, que, em 1876, publica livro que teve grande repercussão, mas que hoje seria objeto de riso, porque, entre outras coisas, professava que certas pessoas nascem com tendência irreprimível de criminalidade, isto é, apresentariam gens criminogênicos, supostamente perceptíveis em algumas variáveis biológicas, como, por exemplo, esta: se a extensão dos braços abertos fosse maior que a altura da pessoa, isso constituiria indício certo de um criminoso nato, que evidentemente não podia contar com a proteção de uma presunção de inocência contra os interesses da defesa do Estado.
E Enrico Ferri, que foi um dos arautos dessa teoria, chega, por exemplo, a fazer afirmações não menos extremadas, ou absolutas, como a de que não se poderia presumir inocente a um réu que confessasse o crime. E foi dele a proposta, adotada por influência do Código de Processo Penal Italiano de 1931, do que constava da redação original do art. 386, VI, e hoje consta do inc. VII, do nosso Código de Processo Penal, que distinguia um tipo de sentença absolutória baseada no quê? Na insuficiência de prova, como se isso alterasse o fato de que a decisão do juiz, nesse caso, declara, sem ressalva e para todos os efeitos, que o réu é inocente.
Ao lado dessa Escola, outra aparece, a técnico-jurídica, que, usando metodologia idêntica, baseada também no raciocínio indutivo, se inicia com famosa aula magna proferida por Arturo Rocco, criminalista, irmão do Alfredo – o civilista e professor de direito comercial –, em 1905, na Faculdade de Direito de Sassari, onde lança a base do chamado caráter técnico que devia ditar uma concepção de pureza do direito criminal, centrado nos textos da lei, perante a qual os direitos sociais tinham que prevalecer na qualificação da condição do réu e na questão da prova da culpa, porque, dizia ele, o réu não é nem inocente, nem culpado; o réu apresentaria uma condição intermediária no curso do processo, a qual seria absolutamente incompatível com um princípio ou regra que lhe reconhecesse presunção de inocência.
Essa Escola foi, sobretudo, capitaneada por um homem importantíssimo na história do direito penal e do processo penal, mas também do ponto de vista político, Vincenzo Manzini, que escreveu o relatório ministerial do projeto preliminar do Código de Processo Penal e no qual afirma que a regra da presunção de inocência era desajeitadamente irracional e contraditória (goffamente paradossale e irrazionale), além de constituir estranho absurdo do empirismo francês (strana assurdità dall’empirismo francese), e, como tal, sem lugar num ordenamento jurídico civilizado, enquanto preocupado com a defesa da sociedade em primeiro lugar.
Esse penalista teve influência decisiva, não apenas na elaboração do Código de 1931, mas também na redação da Constituição italiana de 1948. O Código de Processo Penal Italiano de 1913 não fazia nenhuma referência à presunção de inocência. O de 1931 foi que, como modelo do nosso Código de 1942, instaurou a prisão preventiva obrigatória. Manzini ainda comandou, em boa medida, a redação da regra na Constituição Italiana, cujos debates duraram até dezembro de 1947 – a Constituição Italiana entrou em vigor em 01.01.1948 – e demonstram ter havido certo acomodamento de posições. Por quê? Porque, a respeito, o projeto propunha a seguinte redação: L’innocenza dell’ imputato è presunta fino a la condanna definitive.
Ou seja, a inocência do réu é presumida até a condenação definitiva. Mas, por sua interferência, sustentando a inadmissibilidade do princípio, embora fosse necessário adotar princípio parecido, que denominou de não culpabilidade, o art. 27, n.2, da Constituição Italiana, foi aprovado com a seguinte redação: L’imputato non è considerato colpevole sino alla condenna definitive. Parece que se trata de mera alternativa redacional. Mas a mudança provocou, na Itália, como gostam todos os italianos, outra polêmica: a de saber se tinha sido adotada, ou não, pela Constituição, a regra da presunção de inocência.
Um jurista, ainda vivo, Giulio Iluminatti, escreve, então, uma obra fundamental, clássica, que diz logo que se tratava de questão de mera redação, pois, na verdade, a Constituição havia adotado o princípio. Fiquei muito interessado quando li referência a essa posição de Iluminatti e escrevi-lhe uma carta, quando estava no STF, pedindo um exemplar da obra, já esgotada. Com muita gentileza, respondeu-me, dizendo que louvava minha iniciativa, mas, infelizmente, já não tinha nenhum volume, mas me mandava outro. Mandou-me sobre interceptação telefônica! Foi este o segundo momento.
O terceiro, igualmente importante, coincide, em 1948, com a aprovação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que estabelece a seguinte recomendação (pois não tem caráter mandatório): “Todo homem tem direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade seja provada de acordo com a lei, em julgamento público, com todas as garantias da defesa”.
Este enunciado é o produto do pensamento da common law, onde o princípio da presunção da inocência sempre foi reconhecido, mas encarado sob outro ponto de vista, ou seja, como regra de prova e como regra de juízo, as quais, como elaboração aprofundada do in dubio pro reo, segundo a tradição anglo-saxã, jamais foram ali cristalizadas em norma escrita.
PRESUNÇÃO LEGAL
À rápida reconstituição da evolução das teorias, o princípio pode despertar visões muito diferenciadas. Então, a questão que me propus foi a de examinar por que há visões técnicas não coincidentes a respeito da problemática jurídica que envolve o princípio, que, à primeira vista, parece traduzir uma ideia óbvia. E minha suposição é que a origem dos descompassos advém do fato de o princípio ser conhecido por um nome que não o designa na substância, e que é a palavra presunção. Por que é que não o designa? Porque, em direito, a palavra presunção tem apenas dois significados, que lhe são estranhos, porque é aqui empregada em sentido figurado. De um lado, temos a chamada presunção legal, ou praesumptio iuris. De outro, a presunção lógica, ou praesumptio hominis.
O que significa a presunção legal? É uma técnica de criação de realidades do mundo jurídico. O direito, como qualquer ciência, cria as suas realidades para fins operacionais, isto é, realidades que valem para efeito de construção e atuação de suas normas. Ora, a presunção é técnica de criação de realidade jurídica que se entende melhor, quando comparada com a realidade extrajurídica a que corresponda. Por quê? Porque a presunção legal opera verdade jurídica que, comparada com a realidade extrajurídica, reflete aquilo que ordinariamente ocorre nesta realidade.
Exemplo escolar da presunção legal é a do pater is est quem: o filho da mulher é presumidamente filho do marido. Por quê? Porque, na realidade não jurídica, em geral o filho da mulher é filho do marido. Há exceções, mas é assim que normalmente sucede na vida. Ora, aqui está o ponto essencial. O alcance da chamada presunção de inocência não é produto de alguma avaliação estatística, não obstante Manzini haja afirmado, certa feita, que a experiência histórica teria provado que, na maioria dos casos, os réus são culpados, como se ele se tivesse fundado, a respeito, nalguma pesquisa universal, controlada e criteriosa, ou fosse dotado de paranormalidade, que lhe permitisse afirmar que, a despeito daquilo que se passa dentro do processo, a realidade anterior ao processo seria de que quase todos os réus são culpados, ainda que absolvidos com base em prova inequívoca.
Na positivação do princípio, o direito não faz nenhuma afirmação de realidade ou de fato, quando firma o significado da dita presunção de inocência. Ele não está dizendo que, ordinariamente, quem seja acusado é sempre inocente, o que, em si, já seria despropósito notável. Não há nenhuma base factual para especulação tão absurda, nem tampouco preocupação constitucional a respeito, a qual não está em afirmar o que se passaria na realidade extrajurídica. A referência a presunção tem, na denominação do princípio, outro alcance, designadamente de caráter axiológico, como veremos logo mais. Portanto, o princípio não encerra nenhuma presunção legal ou iuris.
Bem, mas existe uma segunda noção de presunção que é usada em direito, embora não seja exclusiva do campo jurídico. Por quê? Porque se trata de mera regra de lógica, regra de raciocínio, que é a chamada presunção hominis. O que ela significa? Significa tipo de raciocínio baseado na indução, segundo o qual, mediante regras de estatísticas, de observação daquilo que acontece no mundo, permite ao juiz passar do conhecimento de um fato, que está provado, à admissão ou certeza da existência de outro, que precisa de início ser provado e guarde relação lógica com o primeiro.
Seu exemplo que quase todos ouvíamos no tempo da faculdade era daquele famoso desastre, em que um carro bate na traseira de outro. Há aí presunção hominis de culpa. Por quê? Porque ordinariamente, segundo as estatísticas, segundo o que costuma acontecer, se o agente bateu é porque estava distraído. Presunção de culpa. Ou estava muito próximo, sem observar a distância regulamentar. Culpa. Ou porque o freio falhou. Culpa por negligência na manutenção do veículo. É claro que se cuida de algo que a própria indução em si não é capaz de garantir: pode não corresponder à verdade. Pode ser que a suposta vítima, parada num farol, tenha dado marcha à ré.
Eu até conheço um caso, e não é piada, que ilustra as exceções. Certo magistrado, noutra cidade de praia, guiava uma perua provida daquele gancho de puxar barco, quando, incomodado com a buzina do condutor do veículo que estava atrás, num farol, deu violenta marcha à ré que furou o radiador do outro carro, e foi-se embora.
É uma exceção à presunção lógica ou hominis. Ora, não é disso tampouco que a regra trata. Ela não tem propósito de mostrar ao juiz como é que deve raciocinar sobre prova da culpabilidade ou da inocência. Não é disso, dessa modalidade de presunção, que se cuida, como é óbvio. Confirma-se, pois, aqui, a impropriedade do vocábulo presunção (de inocência) para, no uso técnico-jurídico, traduzir claramente o conteúdo normativo da regra constitucional.
GARANTIA CONSTITUCIONAL
A palavra presunção para designar ou tentar nomear tradicionalmente
essa regra é metáfora que deriva daquele étant presumé innocent, constante do art. 9.º, IX, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da Revolução
Francesa. O princípio não versa sobre presunção. Afinal, qual seria, pois, o conteúdo semântico dessa regra, ou, como muitos dizem, desse princípio?
A postura, que vou expor e que sempre adotei, também no STF, como consta de vários votos, muitos dos quais publicados, é que o princípio da chamada presunção de inocência é a afirmação ou garantia constitucional de um valor político-ideológico assumido, na configuração do processo penal e dos procedimentos similares, como consequência direta do reconhecimento da liberdade e da dignidade do homem.
Eu achava que minha posição era até original. Afinal, pagamos todos, de certo modo, o preço à vaidade. “Olha, eu estou pensando alguma coisa um pouco diferente”. Mas não faz muito, relendo um autor espanhol, Vélez Mariconde, nos Estudios de Derecho Penal, deparei com a mesma ideia, onde afirmou que se cuida de princípio tomado por uma decisão política. É, sim, o produto de uma opção política do legislador, constituinte ou não – no nosso caso, do constituinte –, que em nada se entende com qualquer dos significados técnico-jurídicos de presunção, senão que apenas toma esta palavra para dar coerência à previsão de graves consequências jurídico-processuais justificáveis à luz da ideia de inocência considerada como seu pressuposto político-ideológico.
Nesse sentido, o que ele assume perante a experiência histórica a que já me referi? O que contém na sua dimensão semântica? Exatamente, três vertentes que derivam da arqueologia, do desenvolvimento histórico do seu pensamento conceitual.
Em primeiro lugar, é uma regra de tratamento do réu no curso do processo, e cuja origem está no já citado dispositivo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução de 1789, para significar a reação do ordenamento jurídico revolucionário contra os excessos e arbitrariedades do processo do antigo regime. É, portanto, uma garantia, no sentido de que o réu não pode ser tratado no curso do processo como se fosse culpado; deve ser tratado como se fosse inocente. É neste sentido que se presume inocente o réu: para ser tratado, pela lei, no curso do processo, como se fosse inocente! E aqui não há lugar para nenhuma pressuposição de condição intermediária, entre inocência e culpabilidade.
Trata-se de garantia constitucional de tratamento condigno do réu, enquanto não lhe sobrevenha sentença condenatória definitiva. Mas não é apenas regra de tratamento; é também a expressão máxima de um modelo de processo penal, concebido primordialmente para proteger a liberdade, e não, para punir.
Há muitos anos, quando eu era ainda aqui juiz, em São Paulo, escrevi, numa pequena revista que tinha a Associação Paulista dos Magistrados, artigo sobre a pena de morte e, ali, afirmei que o Estado, para punir, não precisa de regra, nem de processo, como, aliás, prova a História. Como detentor do monopólio da força institucional, se quiser punir, pune! E indaguei: para quê, então, serve o processo penal? Metodologicamente, serve para resguardar a dignidade do réu como pessoa humana.
Esta é a finalidade metodológica do processo, como resulta da discussão em que se envolveram as escolas italianas, as quais, nas polêmicas sobre os fundamentos do processo, deixaram nítida a diferença de concepções a respeito do papel que deve desempenhar o processo em relação ao conflito entre as necessidades da defesa social e as exigências de resguardo da dignidade da pessoa humana do réu. É até mais do que isso. Tal concepção incorpora, como vamos ver logo a diante, todos os valores básicos e predicados do chamado devido processo legal, como ingrediente ou conteúdo essencial do modelo.
Mas é também, em terceiro lugar, regra de juízo, isto é, regra de decisão e, como tal, tem reflexos importantes no campo probatório, na distribuição do ônus da prova. E este aspecto é ressaltado pelas ideias subjacentes à Declaração de 1948.
SENTIDO DO VOCÁBULO
Agora tentarei fazer uma síntese dos desdobramentos do alcance do princípio, sobretudo perante a nossa Constituição de 1988, que o adotou de modo expresso no art. 5.º, LVII. Nenhuma Constituição anterior o consagrou literalmente. E é muito interessante rever a história da redação desse inciso, porque o art. 43, § 1.º, do Anteprojeto dizia o seguinte: “Presume-se inocente todo acusado, até que haja declaração judicial de culpa”. O deputado constituinte, que depois foi governador do estado do Espírito Santo, José Inácio Ferreira, apresentou emenda que resultou na redação atual do inc. LVII, onde se estatui, com outras palavras, que ninguém – ninguém – será considerado culpado, até que lhe sobrevenha sentença condenatória definitiva.
Há aí alguma diferença? Toda! Porque nossa Constituição é o único ordenamento jurídico que revela essa amplitude da garantia, pois, introduzindo o vocábulo “ninguém”, não a restringiu ao réu do processo penal. A regra, portanto, apanha, já no campo do processo, vamos dizer assim, quem se encontre em posição análoga em todas as fases anteriores da persecução criminal: apanha o mero suspeito, o investigado e o indiciado. Nenhum deles pode ser considerado culpado, senão inocente, para efeito de tratamento normativo, até que sobrevenha sentença condenatória definitiva. Mas vai além, porque extravasa o processo e se aplica a todas as situações redutíveis ao modelo do processo penal, como, por exemplo, os procedimentos disciplinares, administrativos ou não, onde ninguém pode ser tratado como se fosse culpado, antes de juízo definitivo de culpabilidade.
Como é que tem sido tratado isso na história da nossa jurisprudência? Até a atual Constituição, o STF, se não me falha a memória sobre velha pesquisa, dedicou pouco mais de duas ou três decisões a respeito do princípio, as quais nem eram muito explícitas, porque mais se debruçavam sobre a vertente da regra de juízo. Alguns tribunais estaduais aplicavam o princípio sob fundamento de que tinha sido incorporado ao ordenamento por força da Declaração dos Direitos do Homem, mas também o aplicavam com certa parcimônia.
O fato é que, após o início de vigência da atual Constituição, é que se avivou o problema, que, levado ao STF por diversas vias, como vamos ver, suscitou e suscita esta indagação: qual a substância normativa do seu tríplice significado? Tal substância pode resumir-se no seguinte: é a garantia constitucional que proíbe a aplicação de qualquer espécie de sanção ou de outra medida que, gravosa à esfera jurídica do réu, seja causalmente dependente de um juízo de culpabilidade ainda não definitivo.
O que estou querendo com isso dizer? Estou querendo dizer que a regra constitucional não permite que o ordenamento jurídico, e, muito menos, os seus executores, apliquem ao réu, ou a quem se encontre em situação assemelhada à do réu, nenhuma medida de caráter sancionador, nem sequer quando se dê a esta palavra um caráter mais restrito, isto é, nenhuma medida de caráter gravoso ou lesivo à sua esfera jurídica como um todo, e não apenas à sua liberdade, se tal medida só tiver uma explicação jurídica que seja um juízo de culpabilidade – a menos que esse juízo de culpabilidade constitua decisão transitada em julgado.
Em outras palavras, não se pode aplicar ao réu, em particular – vamos tratar aqui apenas do réu – nenhuma medida, nenhuma, que seja danosa a seu patrimônio jurídico de liberdade ou até material, e cuja explicação única seja a existência, patente ou latente, de juízo de culpabilidade antes de uma sentença penal condenatória definitiva. Dou um exemplo: no que concerne a decreto de prisão preventiva, cuja fundamentação real, não a formal (porque a explicação formal pode revestir-se de palavras cuidadosas que evoquem motivos até nobres, mas que escamoteiam a realidade), só se entenda e justifique como produto de consideração judicial de culpa de quem ainda não foi definitivamente condenado, então temos um caso de ofensa claríssima à Constituição.
E não há aqui meio termo, como se pudéssemos objetar: “Bem, não se podem aplicar todas as sanções ao réu, mas algumas podem”. Não, não se pode aplicar nenhuma! Nenhuma medida gravosa, como, por exemplo, já reconheceu o STF em favor de servidor público, réu em processo por crime contra a administração pública, a quem o governo determinou que, enquanto corresse o processo penal, fosse aplicado desconto permanente de um terço dos vencimentos.
Havia, nisso, afronta direta à regra constitucional da chamada presunção de inocência, embora a sanção, ou desconto mensal de parte dos vencimentos, não ofendesse a liberdade pessoal do réu, mas seu patrimônio pecuniário. Era uma sanção, medida lesiva, e, portanto, sua aplicação era incompatível com o alcance da regra. Não se dava ao réu o tratamento de quem devia ser considerado ou presumido inocente!
SENTIMENTO INATO
E é muito simples a racionalidade do princípio. Por quê? Por vários motivos, um dos quais já foi aventado por Beccaria, que reconhecia, mais ou menos, o seguinte: a humanidade não ganha nada ao condenar um inocente ou aplicar-lhe uma sanção, que é sempre irreversível.
Muitos se lembram de um filme famoso do super-homem, em que a mocinha morre num evento qualquer e, diante da tragédia, o super-homem voa e faz girar a Terra em sentido contrário, refazendo o curso da história. Não temos super-homem que faça isso com as medidas gravosas aplicadas aos réus, que ao final sejam reputados inocentes. Nada é reversível. Não há dinheiro que pague o sofrimento imposto a um inocente, em particular quando essa inocência vem a ser declarada ao cabo do processo penal.
E, mais, isso afronta um sentimento inato de justiça, que os que temos filhos e netos somos capazes de aprender com eles, que ficam revoltados quando sofrem punição injusta dos pais, ou dos avós. Avós, normalmente, não punem neto. Só deseducam. Até as crianças ficam revoltadas quando sofrem punição por algo que não fizeram. Isto é, até as crianças trazem em si, como próprio do espírito humano, essa capacidade de se indignar com punição injusta. E isto, a agressão ao sentimento universal de justiça, o ordenamento jurídico não pode convalidar, ainda que sob disfarce de medidas de aparente defesa social.
Na prática, como se particularizam ou quais são as consequências desse princípio? Muitos são importantíssimos, mas o primeiro deles é que a regra da chamada presunção de inocência é o critério fundamental de avaliação da justiça do processo.
O que significa isso? Às vezes, não prestamos atenção às palavras. Todos repetimos a tradução, de certo modo correta, da dupla adjetivação do enunciado “devido processo legal”. Mas só nos preocupamos com o fato de o processo dever ser legal, revoltando-nos, justamente, quando não seja legal. Mas poucos se perguntam por que o processo, segundo a Constituição, além de ser legal, tem que ser devido. A palavra devido está fazendo o quê na expressão? Está enfeitando o enunciado? Não. É a jurisprudência da Suprema Corte Norte-Americana que faz muito nos revelou o sentido eminente do due na experiência jurisprudencial anglo-saxã, de onde nos veio a garantia sob título de due process of law.
O que exprime esse adjetivo? Exprime apelo para os critérios superiores de Justiça dominantes na consciência da sociedade em certo período histórico. Ou seja, para que um processo seja constitucional, compatível com a Constituição, não basta seja disciplinado por lei constitucional (ser legal). Além disso, tem que ser um processo cujo perfil normativo é devido por justiça (ser justo). Foi este aspecto vital, não raro despercebido, que emenda da Constituição italiana pretendeu acentuar, dando nova redação ao art. 111, primeira parte, que agora dispõe: La giuridizione si attua mediante il giusto processo regolato dalla legge. Eis a tradução perfeita do due proces of law: o justo processo da lei.
Nos votos que proferi a respeito no STF, muitas vezes preferi usar a expressão justo processo da lei, para enfatizar que o processo, além de ser legal, precisa ser justo. E o critério constitucional de aferição ou medida da justiça do processo é a regra da presunção da inocência, porque, se o réu seja tratado, pela lei, dentro do processo, como se fosse culpado, poderia até imaginar-se um processo legal, mas não será nunca um processo justo, e, portanto, não é compatível com a Constituição.
O processo penal tem fim instrumental evidente, que é apurar culpa e puni-la, mas tem também fim metodológico. Qual é este fim metodológico? É garantir a liberdade e a dignidade do réu no curso do processo, pelo simples fato de tratar-se de um ser humano que, ainda quando acusado e eventualmente culpado do crime mais abominável, não perde a condição de ser humano, dotado da dignidade comum, que o ordenamento jurídico tem que respeitar.
Não se cuida de invenção de juristas, nem de advogados desocupados. É uma conquista, aliás custosa, do espírito humano e da civilização, e que, como tal, governa a orientação legal do tratamento do réu e é a fonte das suas prerrogativas, tanto as legais, quanto as constitucionais, que integram o modelo liberal de processo adotado entre nós por força da garantia. É, nesse sentido, técnica contra os abusos da perseguição estatal, as pressões odiosas da opinião pública e os excessos da mídia, todas as quais estão submetidas à Constituição.
Não é apenas o juiz, que eventualmente viola a Constituição, é também a opinião pública e, não raro, a mídia, quando e porque consideram culpado e tratam como tal quem é apenas mero réu no curso do processo. Nada disto é condizente com a Constituição da República.
E o princípio é também regra de juízo, regra decisória. Como sabemos, as chamadas regras do ônus da prova são apenas indiretamente estímulos para o comportamento das partes dentro do processo. Sua destinação direta e específica é outra: serem regras dirigidas ao juiz, regras de decisão. Para quê? Para aqueles casos em que, encerrada a instrução sem alternativa doutras provas, isto é, aqueles casos em que se esgotaram todas as possibilidades de prova, mas o juiz permanece num estado de incerteza absoluta que não é capaz de superar.
Ele não pode proferir um non liquet, é obrigado a decidir. E como vai decidir? Nos termos que lhe indicam as regras do ônus da prova, a lei diz como fazê-lo. Mas vamos aqui cuidar como o diz a Constituição.
No processo civil, a regra do ônus da prova está ligada às dificuldades de prova das fattispecie normativas, razão por que, da sua moldura, a lei separa os elementos abstratos em fatos constitutivos e fatos liberatórios, distribuindo-lhes o encargo de prova ao autor e ao réu, porque, se só um deles tivesse que provar tudo, ficaria muito difícil. Tal distribuição ajusta-se ao campo do processo civil, porque o objeto útil de defesa é aí a liberdade jurídica do réu.
Na área do processo penal, o que está em jogo é a liberdade física do réu, de modo que a regra do ônus da prova evidentemente não podia ser a mesma. E até se discute se há, deveras, regra de ônus da prova no processo penal, mas isso não nos interessa aqui, porque o que releva é que o princípio da presunção de inocência dita a regra da decisão: se não estiver provada a acusação, o juiz tem de absolver o réu. Por quê? Porque é a acusação que fixa o objeto da prova no processo penal. No processo penal, não há outro objeto de prova. A inocência do réu não é objeto da prova do processo penal.
O objeto de prova do processo penal é a acusação, e, daí, todas as consequências que nascem da regra constitucional, de que o réu não tem de colaborar com a acusação, porque o réu não precisa fazer prova da sua inocência e tem o direito de não se autoincriminar. Por quê? Porque não tem ônus de provar que a acusação não procede. É o autor da ação penal que tem de prová-la; se não prova, o juiz é obrigado, por força, não do art. 386 do CPP, mas da Constituição, pelo princípio da presunção de inocência, a declará-lo inocente.
Isso vale não apenas em termos do in dubio pro reo, mas também em termos de interpretação, a título de favor rei. Ou seja, até a interpretação das normas penais e processuais penais há de ser sempre favorável ao réu. Nenhuma norma de caráter penal ou processual penal pode ser, em caso de dúvida, interpretado em dano do réu, porque ofende a regra constitucional da presunção de inocência.
Vejamos exemplos práticos de certas ofensas constitucionais: tratamento policial desrespeitoso a suspeitos, a indiciados; tratamentos judiciais abusivos; algemas desnecessárias, a cujo respeito o Supremo editou súmula vinculante, admitindo-as apenas em caso de risco fundado à segurança própria ou alheia; exigir ao réu falar de pé, o que me induz à tentação de pensar se estivesse o magistrado, por absurdo, interrogando a mãe, a deixaria de pé?
Há, por outro lado, necessidade de rever o Código de Processo Penal de 1942, confessadamente inspirado no Código italiano de 1931, concebido nas entranhas do fascismo pelos irmãos Rocco. Não estou falando aqui do Rocco e Seus Irmãos, do Luchino Visconti, não. Estou falando do Arturo, o Penalista, e do Alfredo, Ministro da Justiça de Mussolini, ambos os quais, um de modo direto, com Manzini, redigindo-o, e o outro, defendendo a adoção do Código fascista de 31, do qual o nosso herdou vários institutos, como a extinta obrigatoriedade da prisão preventiva, o primado da defesa social, etc., tudo o que pede, em nome da regra constitucional, permanente revisão exegética, até para evitar coisas de certo modo até perturbadoras.
Durante certa época, o STF admitia a chamada execução provisória, que é espécie de tutela provisória ou antecipada no campo penal. Isto é, prende-se o réu, executa-se a pena, antes de a sentença condenatória transitar em julgado. Houve até ministro que sustentou o seguinte: a regra constitucional da presunção de inocência aplica-se em alguns casos, como, por exemplo, impede lançar o nome do réu no rol dos culpados, não, porém, em outros. Ou seja, cumprir pena, pode, antes do trânsito em julgado; lançar o nome do réu no livro, não! Fui juiz durante 45 anos. Nunca vi um livro chamado Rol dos Culpados! Nem sei se existe, ou existiu!
Há coisas que me dão satisfação, pelo fato de sair com a consciência tranquila de ter cumprido o meu papel no STF. Nesse sentido, fui um dos que colaborei para que o Supremo já não permitisse execução provisória. Isto se deu no julgamento do HC 84.078 e, em particular, numa reclamação, onde o meu voto está declarado, a Rcl 2.391, que acabou sendo julgada prejudicada, porque, antes do termo do julgamento, o réu foi solto. Mas ali se deixou claro que a regra constitucional não permite execução antecipada da pena. E também colaborei na revogação da jurisprudência que exigia ao réu recolher-se preso para apelar, o que insultava a regra constitucional da presunção de inocência, de igual modo.
É bem verdade que fiquei vencido na questão das chamadas fichas sujas. Fazer o quê! Nada é unânime nesse mundo! Provavelmente, fui eu que estive errado, e certa a douta maioria. Mas a mim me parecia, e ainda parece, que aplicar uma consequência gravosa por uma decisão judicial que não transitou em julgado, para impedir a elegibilidade, era ofensa à regra constitucional.
Mas o que mais chama a atenção – de todos, provavelmente –, e suponho não seja exagero, é o problema da prisão preventiva. Não vou relembrar aqui os princípios da cautelaridade no processo penal, mas partir de uma afirmação que não é minha, senão de grande jurista, que também é ministro de Suprema Corte da Argentina, Raul Eugenio Zaffaroni, que fez a seguinte observação: na América Latina, as normas sobre prisão preventiva não são normas processuais, são normas penais, porque o seu destino é infligir sofrimento aos réus.
A prisão preventiva só pode, não de acordo com o Código de Processo, mas com a regra constitucional da presunção de inocência, justificar-se, v.g., por necessidade da preservação do processo, como, por exemplo, diante de possibilidade concreta de perversão da prova, por corrupção de perito, intimidação de testemunha etc.; ou por conveniência de evitar que réu, cujo ato seja objeto de provas solidíssimas de culpabilidade, escape à aplicação da pena, quando haja indícios fortes de que vá fugir.
Mas a gravidade dos problemas sobre prisão preventiva está menos nessas hipóteses que no entendimento da expressão oca “ofensa à ordem pública”. Há muitos anos proferi palestra sobre ordem pública, e, na sua preparação, apurei que, em direito, a primeira vez em que se usou a expressão “ordem pública” foi num documento, emitido logo depois da Revolução Francesa, para significar a ordem sociopolítica e econômica revolucionária. Ordem pública assume, no direito, esse significado estrito: é ordem política, econômica e social.
Mas o uso desse conceito indeterminado esconde, não raro, o que se costuma denominar razão astuciosa, porque é usado como justificação formal para esconder sabor de vingança, às vezes até certa parcialidade ou juízo de justiça sumária: “Ah, pelo jeitão, esse réu é culpado”. Outras vezes, a tentação de ser porta-voz da opinião pública. Afinal, como seres humanos, estamos sujeitos a essas armadilhas. Ou, ainda, até obsessão ideológica, quando sucumbimos, sem juízo crítico, ao peso da nossa história pessoal e das nossas irracionalidades.
Essas hipóteses de justificação formal da prisão preventiva ofendem a Constituição, ofendem a regra da presunção de inocência. Por quê? Porque servem para, no fundo, satisfazer sentimento social de justiça, aplacar o clamor público, valendo-se do pretexto de periculosidade do agente, quando nem se sabe ainda se cometeu o crime, ou agindo em nome da credibilidade da justiça, da exemplaridade da condenação, ou da gravidade do delito.
Nenhum desses casos pode ser explicado, senão por uma razão astuciosa, porque em todos a causa verdadeira se radica num juízo antecipado de culpabilidade do réu que ainda não foi julgado, mas que já sofre uma pena – a pena da prisão preventiva –, sem que nada possa reparar-lhe a injustiça da subtração da liberdade, quando venha a ser declarado inocente. Exagero da Constituição, ou exigência do espírito civilizado? O meu ideal é que todos pudéssemos compreender a grandeza do princípio.
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