A tramitação do Projeto de Lei nº 122, de 2006, no Congresso Nacional, pendente de deliberação pelo Senado Federal, mostra os riscos da cogitada mora inconstitucional do Legislativo em analisar o mérito da questão da criminalização da homofobia e da transfobia.
Hannah Carvalho
1 O CAMINHO TRAÇADO PELO PROJETO DE LEI 122/2006
Desde 2006 encontrava-se em tramitação o Projeto de Lei da Câmara nº 122 (PL 5.003 de 2001, na origem), de autoria da então deputada Iara Bernardi, e que foi arquivado ao final da legislatura de 2014.
O referido projeto, conhecido como o que Criminaliza a Homofobia, a princípio pretendia promover alterações em dispositivos constantes na Lei 7.716/89 (Lei de Racismo), na Consolidação das Leis do Trabalho e no Código Penal. O objetivo seria o de coibir discriminações motivadas por gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero através de imputação de pena a diversas condutas que - se pretendia - fossem consideradas crimes ou qualificadoras de crimes já previstos.
O projeto tem sido o centro de um sem número de discussões, mormente no que tange à pertinência da proposta de tipificação da homofobia e transfobia, e à morosidade do Congresso em analisar a questão, uma vez que, se considerado o projeto originário, já se somam catorze anos de trâmite legislativo.
Nesse ínterim, foram realizadas diversas audiências públicas e o projeto passou por deliberações nas comissões de Assuntos Sociais (CAS), de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) e de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC), sem, contudo, encaminhar-se para um desfecho.
Em sede de deliberações, emendou-se a proposta por mais de uma vez, com o intuito de acolher opiniões dos mais diversos grupos a respeito do tema, e de tal forma a preservar - ainda que minimamente - os interesses políticos e morais de cada um deles. Nas palavras de Paulo Paim, que deu ao PL 122/2006 sua atual conformação, o substitutivo ora apresentado “se consubstancia em modificação legislativa que não traz prejuízos de nenhuma ordem a ninguém e ainda é capaz de elevar nosso patamar civilizatório” (PAIM, 2013).
Tais alterações visam, em suma, a resguardar o respeito aos espaços e eventos religiosos e a contemplar numa única lei todas as formas de preconceito - e não só o relativo à orientação sexual. Foi também retirada do projeto a proposta de alteração do art. 140, §3º, do Código Penal Brasileiro, que acrescentava os elementos “gênero, sexo, orientação sexual, identidade de gênero ou condição de pessoa idosa ou com deficiência” como pretensas qualificadoras do crime de injúria.
Assim, o cerne do PL 122/2006 é contemplado no art. 1º do supracitado substitutivo, que propõe seja alterada a ementa da Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Lei de Racismo), para que passe a vigorar com a seguinte redação:
Define e pune os crimes de ódio e intolerância resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, origem, gênero, sexo, orientação sexual, identidade de gênero ou condição de pessoa idosa ou com deficiência (grifo nosso) (PAIM, 2013, p.9).
Propõe-se, outrossim, a inclusão da passagem em destaque nos artigos 1ª, 3º, 4º, 8º e 20 da mesma lei, de acordo com o art. 2º do substitutivo a que se fez referência.
Paim aduz que o atual texto do Projeto “reforça a perspectiva de prevalência dos direitos humanos e condena toda prática atentatória de direitos que tenha por fundamento o ódio e a intolerância por qualquer característica ou condição do ser humano” (PAIM, 2013, p.7). Não se limita, portanto, a condenar aqueles relacionados a aspectos da sexualidade dos indivíduos, incluindo no texto também as pessoas idosas e as com deficiências, quem têm sua liberdade tolhida em virtude de desarrazoado e, portanto, condenável, preconceito.
Nesse esteio, ante a ausência de respostas concretas às demandas dos destinatários imediatos da pretendida norma reguladora, assim como da sociedade como um todo, ingressou a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) com o Mandado de Injunção 4733, em 2013, instrumento este que será estudado mais adiante neste artigo.
O relator do referido MI, o Ministro Ricardo Lewandowski, não conheceu do mandado de injunção, o que ensejou a interposição de agravo regimental. Fato curioso - e que será a seguir mais esmiuçadamente apreciado- diz respeito ao parecer - que data de 25 de julho de 2014- do atual Procurador Geral da República. Rodrigo Janot, que, ao considerar desacertada a decisão monocrática de extinção precoce da ação sem julgamento de mérito, e se posicionar favoravelmente ao provimento do mencionado agravo regimental, foi na contramão do que vinha afirmando o Ministério Público até então acerca do assunto.
Outrossim, propôs o Partido Popular Socialista (PPS) a Ação direta de inconstitucionalidade por omissão 26/DF (ADO 26), requerendo, entre outras coisas, a declaração da mora inconstitucional do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia e a transfobia, e a fixação de prazo razoável para a Casa aprovar legislação que contemple tais condutas discriminatórias em razão de orientação sexual.
O relator do feito, o Ministro Celso de Mello, solicitou, em março do presente ano, manifestação da Procuradoria-Geral da República sobre a admissibilidade da predita ADO. A solicitação foi atendida em junho, e o parecer de Janot traz interessantes pontos de discussão, que serão doravante apresentados.
Não se intenta, aqui, adentrar na questão quanto ao seu mérito, apesar de o debate quanto a ele se mostrar bastante pertinente. Uma vez já expostos, embora de forma sucinta, os principais pontos envolvendo o predito Projeto de Lei e o desenrolar dos fatos, cumpre agora analisar a situação sob a ótica do cabimento ou não dos institutos utilizados pela ABGLT e pelo PPS na tentativa de driblar a morosidade da deliberação do PL 122/2006. Isto será feito tomando-se sempre por baliza os preceitos constitucionais cabíveis, sem olvidar do cenário social no qual se desenrola a matéria.
Mister, portanto, ponderar sobre as diversas orientações constitucionais que se fazem oportunas no caso que ora se examina - tanto do ponto de vista procedimental, quanto do que pretende firmar a Carta Magna como orientadora e garantidora da igualdade fundamental e da dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, cabe agora proceder-se a um exame mais completo acerca dos institutos do mandado de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, de forma a perquirir se de fato foram aventados em sede de constitucionalidade incontroversa.
2 DO MANDADO DE INJUNÇÃO
Antes de tecer maiores considerações sobre o Mandado de Injunção 4733, especificamente, faz-se oportuno frisar, ainda que brevemente, alguns pontos envolvendo esse instrumento em abstrato.
O mandado de injunção - assim como a ação direta de inconstitucionalidade por omissão - é um instrumento que visa a exercer um controle sobre o legislador que se mostra omisso em sua missão de concretização da Constituição e de realização do Estado de Direito democrático.
Para atender a tal fim, a Constituição Federal de 1988 previu de forma expressa, em seu art. 5º, LXXI, a concessão de mandado de injunção “sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”, in verbis.
O mandado de injunção, no entanto, vem sendo alvo de muitas divergências doutrinárias e jurisprudenciais, porquanto a abrangência de seu conteúdo, de seu significado e das decisões proferidas nesse processo ainda não é bem delimitada. É preciso usar de bastante cautela ao tratar sobre o tema, uma vez que as consequências de não se definir precisamente o alcance desse remédio constitucional podem oscilar, extremadamente, entre a ineficiência do mesmo e o excessivo ativismo judicial.
Na primeira hipótese, caso se entenda que as decisões proferidas em sede de mandado de injunção têm caráter meramente mandamental, sem, no entanto, conter “os elementos mínimos que assegurem sua plena aplicabilidade” (MENDES, 2013, p. 1341), estar-se-ia diante de um instituto de limitada eficácia, visto que não haveria sanção ao órgão legiferante que insistisse na já declarada omissão inconstitucional, nem tampouco respostas aos anseios de quem demanda seja colmatada suposta lacuna legal.
Por outro lado, somar ao efeito mandamental típico da decisão efeitos outros, como a estipulação de prazo para suprimento da lacuna relativa à mora legislativa e a normatização da matéria - ainda que provisoriamente - pelos membros da Corte Suprema, poderia configurar intromissão do Judiciário na atividade afeta ao Poder Legislativo, ferindo gravemente o princípio da separação dos poderes.
Era no sentido de coibir tal ativismo jurídico que costumava julgar o Supremo Tribunal Federal, conforme se depreende do seguinte trecho, extraído da ementa da decisão proferida no Mandado de Injunção n. 284, de relatoria do Ministro Marco Aurélio:
O novo “writ” constitucional, consagrado pelo art. 5º, LXXI, da Carta Federal, não se destina a constituir direito novo, nem a ensejar ao Poder Judiciário o anômalo desempenho de funções normativas que lhe são institucionalmente estranhas. O mandado de injunção não é o sucedâneo constitucional das funções político-jurídicas atribuídas aos órgãos estatais inadimplentes. A própria excepcionalidade desse novo instrumento jurídico impõe ao Judiciário o dever de estrita observância do princípio constitucional da divisão funcional do Poder (MENDES, 2012, p. 1364).
Outras decisões da Egrégia Corte, no entanto, têm sinalizado para uma nova compreensão do instituto, acatando a possibilidade de se produzirem sentenças de status mais funcional. Segue nessa nova orientação a decisão proferida pelo Ministro Sepúlveda Pertence no Mandado de Injunção 283, cujo excerto se lê adiante:
Se o sujeito passivo do direito constitucional obstado é a entidade estatal à qual igualmente se deva imputar a mora legislativa que obsta ao seu exercício, é dado ao Judiciário, ao deferir a injunção, somar, aos seus efeitos mandamentais típicos, o provimento necessário a acautelar o interessado contra a eventualidade de não se ultimar o processo legislativo, no prazo razoável que fixar, de modo a facultar-lhe, quanto possível, a satisfação provisória do seu direito (grifos nossos) (MENDES, 2012, p. 1362).
A discussão acima exposta é deveras importante para o entendimento das polêmicas que envolveram o caso do Mandado de Injunção 4733, impetrado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros contra o Congresso Nacional, bem como para compreender os argumentos sustentados por cada um de seus atores, sendo especialmente interessante o posicionamento do Ministério Público, nas pessoas de seus então Procuradores Gerais, no desenrolar dos fatos.
O MI 4733 postulava, essencialmente, o enquadramento da homofobia e da transfobia no conceito de racismo e a declaração de mora inconstitucional do Congresso Nacional em seu dever de editar legislação criminal que punisse especialmente - mas não exclusivamente - a violência física, os discursos de ódio, os homicídios, a prática ou o induzimento de preconceito por conta da orientação sexual ou da identidade de gênero do indivíduo.
As manifestações do Senado Federal, da Câmara dos Deputados, da Advocacia Geral da União e do Ministério Público Federal quanto à questão foram pela denegação da ordem injuncional ante a improcedência dos pedidos e a inadequação da via eleita, pela ausência de mora legislativa ou de dever constitucional de legislar sobre o tema. Tais argumentos foram acatados pelo Ministro Ricardo Lewandowski, que decidiu por não conhecer do MI e extingui-lo sem julgamento de mérito.
Foi, então, por ocasião do agravo regimental interposto contra a decisão do Ministro Lewandowski que curiosa reviravolta foi vivenciada. Na oportunidade, requereu-se mais uma vez a manifestação do Ministério Público Federal, que já havia anteriormente se pronunciado pelo não cabimento do mandado de injunção proposto. Ocorre que, em 25 de julho de 2014, o sucessor de Roberto Gurgel na Procuradoria Geral da Republica, Rodrigo Janot, emitiu parecer pelo provimento e acolhimento do agravo regimental e defendeu, entre outros aspectos, a possibilidade de provimento judicial via mandado de injunção no caso em tela, nestes termos conclusivos:
O Ministério Público Federal opina pelo provimento do agravo, para que se conheça do mandado de injunção e se defira em parte o pedido, para o efeito de considerar a homofobia e a transfobia como crime de racismo e determinar a aplicação do art. 20 da Lei 7.716/1989 ou, subsidiariamente, determinar aplicação dos dispositivos do Projeto de Lei 122/2006 ou do Projeto de Código Penal do Senado, até que o Congresso Nacional edite legislação específica (BARROS, 2014, p.19).
Observa-se que o novo posicionamento adotado pelo chefe do MPF envereda para uma noção mais abrangente das possibilidades do mandado de injunção, perfilhando-se à corrente concretista (como a verificada no supratranscrito trecho da decisão do MI 283), em detrimento da corrente não concretista, na qual a sentença tem natureza meramente declaratória. Como bem esclarece Alexandre de Moraes, as sentenças na corrente concretista têm natureza constitutiva e declaram a existência da omissão inconstitucional, ao passo que implementam a norma para viabilizar o exercício do direito ou prerrogativa, até que o Poder competente expeça a regulamentação (MORAES, 2010).
Fato é que, conforme se demonstrou mais acima, a jurisprudência do STF “adotou, portanto, uma moderada sentença de perfil aditivo, introduzindo modificação substancial na técnica de decisão do mandado de injunção” (MENDES, 2012, p. 1374). A preferência pelo claro ativismo judicial, segundo Barroso, é “um avanço capaz de retirar do limbo o mandado de injunção” (BARROSO, 2009, p.274). Ainda nesse sentido o mesmo autor assevera:
O Judiciário é o guardião da Constituição e deve fazê-la valer, em nome dos direitos fundamentais e dos valores e procedimentos democráticos, inclusive em face dos outros Poderes. Eventual atuação contramajoritária, nessas hipóteses, se dará a favor, e não contra a democracia (BARROSO, 2008, p.19).
Esse posicionamento de Janot vai diretamente de encontro com o argumento aventado pelas instituições que se mostraram contrárias ao provimento do MI 4733, que defende que uma sentença aditiva em sede de mandado de injunção constitui afronta das mais graves ao princípio da separação de poderes e ao princípio da reserva legal penal, mas que, comprovou-se, resta superada pelas decisões da própria Corte Suprema.
Outrossim, chegou o ex–Procurador Geral da República também a alegar, em seu parecer, que o mandado de injunção era impertinente pois já tramitava projeto de lei concernente à matéria sobre a qual se pretendia declarar a omissão. Ora, a tramitação de um projeto de lei por mais de uma década não pode ser considerada senão como frustração à força normativa da Constituição, sendo incontestável a configuração, no caso, de inertia deliberandi.
Assim, levando-se em conta a deficiente proteção a esse grupo alvo de preconceitos de ordem sexual e genérica, a necessidade de promover-se a igualdade material entre os destinatários das normas e o dever de fazer efetivos os mandamentos constitucionais fundamentais de liberdade e dignidade humana, é arrazoado que se conceda a devida força ao mandado de injunção para que não se torne instrumento inócuo, esvaziado de sentido.
Não há que confundir o conferir a esse instituto as prerrogativas que a própria Constituição vislumbrou para ele com usurpação de um Poder em detrimento de outro, haja vista o poder legiferante não ser retirado do Órgão Legislativo, mas apenas emprestado em sede provisória ao Órgão da Justiça responsável pela realização dos mandamentos constitucionais. Barroso, nesse sentido, chega a afirmar que “a judicialização não decorre da vontade do Judiciário, mas sim do constituinte” (BARROSO, 2008, p.17).
Há, portanto, uma otimização da funcionalidade desses poderes, que não se veem privados - nem um nem outro - de realizarem suas funções precípuas, estando o mandado de injunção no centro desse diálogo institucional salutar.
3 DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO
Como já anteriormente mencionado, no mesmo contexto da morosidade na deliberação do PL 122/2006, o Partido Popular Socialista (PPS) ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 (ADO 26), contra o Congresso Nacional.
Embora tal instrumento em muito se pareça com o mandado de injunção já analisado, há importantes pontos que os diferenciam, como o fato de ser a ADO forma de controle de constitucionalidade abstrato e concentrado, o que impõe seja ela legitimamente proposta somente por aqueles que se encontram listados no rol do art. 103 da Constituição Federal de 1988 (SILVA, 2014).
Como aduz Mendes, “o processo de controle abstrato de omissão (ADO) não tem outro escopo senão o da defesa da ordem fundamental contra condutas com ela incompatíveis” (MENDES, 2012,p. 1329), e sua necessidade se justifica pelas razões já expostas e bem resumidas no seguinte fragmento:
Compete às instâncias políticas e, precipuamente, ao legislador, a tarefa de construção do Estado constitucional. Como a Constituição não basta em si mesma, têm os órgãos legislativos o poder e o dever de emprestar conformação à realidade social. A omissão legislativa constitui, portanto, objeto fundamental da ação direta de constitucionalidade em apreço (MENDES, 2012, p.1333).
Por muito assemelhar-se quanto à forma e ao objeto com o Mandado de Injunção 4733 já mais detalhadamente examinado, não cumpre, por ora, adentrar nas mesmas questões de mérito anteriormente expostas.
Fato é que recentemente a ADO 26 veio novamente à tona quando o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, protocolou no dia 19 de junho de 2015 um parecer – sobre o mesmo tema de criminalização da homofobia e transfobia - em análise à ADO 26, inovando mais uma vez em seu entendimento e fazendo surgir novas polêmicas quanto às possibilidades aventadas por esse instrumento de controle constitucional.
Ao presente estudo interessa tão somente analisar o pedido - constante na Ação direta de inconstitucionalidade por omissão em comento - referente à estipulação, pelos membros do Supremo Tribunal Federal, de prazo razoável para o Congresso Nacional aprovar legislação no sentido de criminalizar a homofobia e a transfobia, equiparando-as aos demais crimes decorrentes de preconceito de raça.
Janot faz um exame de cada ponto proposto pelos requerentes e conclui pelo conhecimento parcial da ação direta e, no mérito, pela procedência do pedido, rejeitando apenas o que pretende obter do Estado indenização às vítimas dos crimes ainda não criminalizados em razão da flagrante inertia deliberandi. Em seu parecer defende que:
Dado o entendimento recente da Suprema Corte brasileira no que se refere às omissões inconstitucionais, é cabível estabelecer prazo razoável (...) para que o Congresso Nacional conclua a deliberação acerca das leis apropriadas (BARROS, 2015, p.28).
Mostra-se favorável, ainda, a que, em caso de não observância desse prazo estipulado, a omissão legislativa possa ser suprida pela própria Corte (BARROS, 2015).
Tal medida, todavia, não é ponto pacífico na doutrina e, segundo Gilmar Mendes, a orientação ainda hoje dominante no Tribunal é no sentido de que “a decisão proferida em sede de ADI por omissão limita-se a reconhecer a inadimplência de dever constitucional de legislar” (MENDES, 2012, p.1346). Ele próprio, no entanto, afirma que essa posição não parece corresponder à complexa natureza da omissão (MENDES, 2012).
Ao contrário do que ocorre nos casos de omissão por parte de órgãos administrativos, em que há previsão expressa para estipulação de prazo limite para superação da mora inconstitucional - conforme se lê na Constituição Federal de 1988, cujo artigo 103, § 2º se transcreve abaixo
Art. 103, § 2º - Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias (grifo nosso),
não previu o poder constituinte igual tratamento às omissões oriundas dos órgãos legiferantes. Nessa esteira de pensamento é que cumpre questionar se não era da própria vontade do constituinte que tal interpretação extensiva, que permite fixação de prazo limite também para a atuação legislativa, fosse defesa, de modo que apenas ao Legislativo cumpriria conhecer da razoabilidade do prazo de que dispõe para propor uma norma ainda não existente ou sobre seu projeto de lei deliberar.
Já é cediço que a inertia deliberandi enseja, de fato, a declaração de inconstitucionalidade por omissão, não eximindo a já existência de projeto de lei em tramitação da responsabilidade imputável aos membros do Congresso, que, por puro jogo de interesses, se esquivam da aprovação de projeto de lei de fundamental importância para a concretização de certos preceitos constitucionais. É claro que temas como o da criminalização da homofobia e da transfobia, exatamente por tratar de criminalização em um contexto em que muito se fala em um Direito Penal mínimo, devem ser intensamente debatidos, vez que há muitos interesses conflitantes mesmo dentro de um mesmo grupo. O arrastar desses debates por catorze longos anos, entretanto, não parece se compatibilizar com a proporcionalidade e a razoabilidade que informam todo o ordenamento constitucional e que devem reger todos os atos que emanam das principais fontes do Poder.
Que fazer, então, diante desse impasse? Tem-se, de um lado, o texto normativo supratranscrito que prevê expressamente a viabilidade de estipulação de prazo em sede de decisão proferida em ADO somente em caso de mora inconstitucional de órgão da administração, bem como o muito invocado princípio da separação dos poderes. De outro lado, tem-se o flagrante descaso do Congresso quanto a um projeto de lei que propõe proteção mais eficiente a direitos tutelados pela Magna Carta e que, caso aprovado, a tornaria mais próxima de sua pretendida concretização. O caráter puramente mandamental de uma sentença que viesse a declarar a inconstitucionalidade da mora do Congresso, sem dar-lhe prazo cabal para superar tal estado, far-se-ia suficiente para que esta Casa se preocupasse em responder aos apelos da sociedade?
Tendo em vista os inúmeros interesses políticos em jogo, mormente quando se vislumbra o patente conservadorismo da atual conformação do Congresso Nacional, crê-se estar diante de uma situação muito mais complexa e que não pode ser discutida focando-se apenas em mandamentos constitucionais de cunho puramente procedimental. Uma conduta nesse sentido, em que se sobreporia a forma à matéria, acabaria por impedir que o objetivo precípuo do Texto Magno, qual seja o de
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social
constante já no Preâmbulo da Constituição de 1988, fosse alcançado.
O mais recente parecer do Procurador Geral da República demonstrou estar atento a essa necessidade de se fazerem concretizar os mandamentos constitucionais atinentes aos valores ditos supremos de igualdade, segurança, liberdade e bem-estar. Sua proposta de se obter uma resposta mais contundente do Judiciário brasileiro – no que concerne à fixação de prazo para superação da lacuna e, em última instância, à superação da omissão inconstitucional pelo proferimento de sentença moderadamente aditiva e de cunho normativo - possibilitaria o exercício pleno das prerrogativas inerentes à cidadania por parte da comunidade que sofre inegável e inaceitável discriminação e limitação de seus direitos puramente em razão de preconceito por conta da orientação sexual e da identidade de gênero manifestada por seus membros.
As preditas práticas ainda não se mostram eficazmente combatidas – não obstante a existência de uma Lei de Racismo e de tipos legais que punem certas condutas atentatórias a direitos – de modo que o ativismo judicial no sentido de coibir a prática de atos atrozes motivados pelo ódio contra um grupo específico de pessoas não se desarmoniza com a Constituição Federal.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisaram-se, aqui, dois importantes institutos utilizados no controle de constitucionalidade, quais sejam, o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Fez-se, para melhor compreensão da matéria, o exame de tais remédios constitucionais em sede do polêmico e tormentoso debate sobre a criminalização da homofobia e da transfobia, trazendo o foco para a patente morosidade do Poder Legislativo em deliberar sobre o Projeto de Lei 122/2006, já em trâmite há mais de uma década.
A pertinência e a atualidade de tal questão se justificam pelo parecer apresentado em junho deste ano pelo Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, ao se posicionar sobre a Ação de inconstitucionalidade por omissão nº 26 (ADO 26). Por muitos motivos foi o parecer relevante, tanto por alterar posicionamentos anteriores de sua própria casa ministerial, quanto por trazer à tona importante discussão sobre o alcance da eficácia dos institutos do mandado de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão.
Essa discussão girou em torno da possibilidade trazida por Janot de o Poder Judiciário ultimar prazo aos legisladores para que deliberem sobre o PL da criminalização da homofobia e da transfobia e, em caso de insistente omissão inconstitucional do Poder Legislativo, o próprio STF apontar, ainda que provisoriamente, a solução normativa que se deve utilizar para superar insidiosa lacuna legal.
A constitucionalidade desse posicionamento encontra supostas barreiras nos princípios da reserva legal penal, da separação dos poderes e na indefinição doutrinária do alcance das sentenças obtidas em sede de mandado de injunção e de ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Neste artigo demonstrou-se, no entanto, que o caminho jurisprudencial que vem sendo adotado e a marcha civilizatória que se pretende traçar abrem espaço para que a rigidez de certas normas constitucionais se afrouxem para a viabilizar a experimentação, na realidade fática, de preceitos como os de igualdade, segurança, proteção e liberdade, de igual superioridade normativa.
Diante do exposto, cumpre destacar a relevância da atuação do Procurador-Geral da República, que, indo na contramão de tudo que já havia sido suscitado pelas principais entidades governamentais, cumpriu seu papel de, ao menos, fomentar o debate a respeito de tema tão fundamental na atual conjuntura social e de tentar promover a fruição, por parte de uma minoria tão esquecida e oprimida, dos direitos de que já gozam a maior parte da população.
REFERÊNCIAS
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