Resumo: Diante da intensa troca de informações no século XXI, não são incomuns os casos de divulgação e transmissão de fatos pretéritos, gerando, na maioria dos eventos, lesão aos direitos da personalidade. É nesse contexto que surge a teoria do direito ao esquecimento, a qual não deve ser vista como uma forma de censura ou como um instrumento que permite ao agente reescrever a própria história, mas sim como um mecanismo que possibilita ao indivíduo discutir o uso que é feito dos fatos pretéritos. O presente trabalho tem, assim, o escopo de analisar a teoria do direito ao esquecimento, fazendo considerações sobre as características do instituto, sua repercussão na doutrina e jurisprudência nacionais, além de analisar, de forma sucinta, sua aplicação pelo Superior Tribunal de Justiça, a partir da comparação de dois recursos especiais que tratam do tema.
Palavras-chave: Direito civil-constitucional. Dignidade da pessoa humana. Direitos da personalidade. Liberdade de imprensa. Direito ao esquecimento.
1 INTRODUÇÃO
A atual sociedade da hiperinformação é caracterizada pelo fácil e rápido acesso ao conhecimento, bem como pelo processamento e transmissão de grandes quantidades de todos os tipos de dados.
Isso traz como conseqüência a transgressão, cada vez maior, de direitos fundamentais, dentre os quais estão os direitos da personalidade.
Das garantias fundamentais à intimidade e à vida privada, bem assim do princípio da dignidade da pessoa humana, a doutrina e a jurisprudência internacionais extraíram o denominado direito ao esquecimento, também chamado pelos norte-americanos “right to be let alone” ou, simplesmente, “direito de ser deixado em paz”.
Nesse diapasão, mediante uma análise civil-constitucional dos direitos da personalidade, o presente trabalho tem como finalidade tecer considerações sobre a teoria do direito ao esquecimento.
Assim, após uma breve análise dos direitos da personalidade e das teorias a ele relacionadas, passa-se a delinear o direito ao esquecimento, com a análise de casos concretos, até que se chegue aos critérios de aplicação propostos por Pablo Dominguez Martinez e, para finalizar, far-se-á uma análise crítica das decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça nos recursos especiais de n. 1.334.097-RJ e 1.335.153-RJ.
2 DIREITOS DA PERSONALIDADE
Os direitos da personalidade emanam diretamente da dignidade da pessoa humana, podendo ser divididos em direitos à integridade física e à integridade moral.[1]
O inciso X, do artigo 5.º, da Constituição Federal de 1988, preconiza que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
O Código Civil de 2002 trata dos direitos da personalidade entre os seus artigos 11 a 21, buscando, acima de tudo, dimensionar direitos e garantias fundamentais na legislação infraconstitucional.
Os direitos da personalidade são direitos subjetivos que têm por objeto os bens e valores essenciais da pessoa, no seu aspecto físico, moral e intelectual[2].
De forma didática, Flávio Tartuce associa os direitos da personalidade com cinco grandes ícones colocados em prol da pessoa no Código Civil, in verbis:
a) Vida e integridade físico-psíquica, estando o segundo conceito inserido no primeiro, por uma questão lógica.
b) Nome da pessoa natural ou jurídica, com proteção específica constante entre os arts. 16 a 19 do CC, bem como na Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973).
c) Imagem, classificada em imagem-retrato – reprodução corpórea da imagem, representada pela fisionomia de alguém; e imagem-atributo – soma de qualificações de alguém ou repercussão social da imagem.
d) Honra, com repercussões físico-psíquicas, subclassificada em honra subjetiva (autoestima) e honra objetiva (repercussão social da honra).
e) Intimidade, sendo certo que a vida privada da pessoa natural é inviolável, conforme previsão expressa do art. 5.º, X, da CF/1988: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.[3]
Os direitos da personalidade são tidos como intransmissíveis, irrenunciáveis, extrapatrimoniais e vitalícios, eis que comuns à própria existência da pessoa. Tratam-se ainda de direitos subjetivos, inerentes à pessoa, tidos como absolutos, indisponíveis e impenhoráveis.[4]
Dentre os direitos da personalidade elencados no Código Civil, merece destaque para o presente trabalho o contido no artigo 20, caput, que tutela o direito à imagem e os direitos a ele conexos. Referido dispositivo legal possui a seguinte redação: “Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”.
2.1 PROTEÇÃO DA PERSONALIDADE: TEORIA MONISTA, PLURALISTA E MISTA
A teoria monista parte do princípio de que a defesa da personalidade deve ocorrer através de um único direito da personalidade, pois aquela é um valor unitário, impossível de fracionamento em diversas situações jurídicas.
Adotar essa corrente doutrinária possibilita uma grande flexibilidade na defesa da personalidade, pois é possível incluir dentro de um único conceito todas as possíveis manifestações daquela.[5] No entanto, por essa mesma razão, há certa imprecisão em relação às situações jurídicas realmente reconhecidas e protegidas pelo referido direito geral, o que causa certa insegurança jurídica na tutela da personalidade.
A doutrina majoritária defende a teoria pluralista, segundo a qual a personalidade é protegida a partir de uma multiplicidade de direitos subjetivos que tem por objeto manifestações daquela.[6] É comum nesta corrente partir da pluralidade de direitos, mas fazer referência ao valor unitário da personalidade como origem dos mesmos.
A teoria pluralista traz uma maior segurança jurídica na medida em que estão previstas cada uma das facetas integrantes da personalidade que merecem proteção.[7] Contudo, também apresenta a desvantagem de que aqueles direitos não reconhecidos de forma expressa pelo ordenamento jurídico são dificilmente tutelados. Por esse motivo, países que sofreram períodos políticos de totalitarismo buscaram soluções alternativas para evitar esses problemas.[8]
Assim, surgiu a teoria mista que, ao mesmo tempo em que prevê a existência de uma pluralidade de direitos da personalidade no ordenamento jurídico, defende a existência de um direito geral da personalidade.[9]
Como exemplo de adoção da teoria mista é possível citar o ordenamento jurídico alemão. O artigo 1.1 da Lei Fundamental de Bonn estabelece o dever incondicional de proteger e respeitar a dignidade humana e o artigo 2.1 do mesmo corpo normativo reconhece o direito que toda pessoa tem ao livre desenvolvimento de sua personalidade, desde que não viole direitos de outrem nem atente contra a ordem constitucional ou a lei moral. Tais previsões normativas levaram a jurisprudência alemã a reconhecer a existência de um direito geral da personalidade.
Esta terceira teoria apresenta a vantagem de que aquelas parcelas ou manifestações da personalidade que não receberam proteção expressa do ordenamento jurídico não ficam desprotegidas, pois encontram guarida na cláusula geral de proteção da personalidade.
Embora seja a mais completa, a teoria mista também apresenta suas desvantagens. Segundo a doutrina, adotando-se a referida teoria, a personalidade somente pode ser defendida sob o prisma do direito subjetivo. Isso gera duas questões, a saber: a primeira, resolver se realmente os direitos da personalidade são direitos subjetivos ou outra figura. A segunda, se aceita a qualificação como direito subjetivo, esta categoria garante plenamente a tutela dos direitos da personalidade ou se é preciso se socorrer de outros institutos.
No ordenamento jurídico brasileiro, os direitos da personalidade estão assegurados tanto pela Constituição Federal quanto pelo Código Civil.
O Título II da Carta Magna de 1988, sob a nomenclatura “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, traça as prerrogativas para garantir uma convivência digna, com liberdade e com igualdade para todas as pessoas, sem distinção de raça, credo ou origem. Tais garantias são genéricas, mas também são essenciais ao ser humano, e sem elas a pessoa humana não pode atingir sua plenitude e, por vezes, sequer pode sobreviver.[10]
Para a efetivação de todos esses direitos, Gustavo Tepedino defende a existência de uma cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, verbis:
Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do § 2.º do art. 5.º, no sentido de não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento.[11]
Na IV Jornada de Direito Civil, realizada no ano de 2006, foi aprovado o enunciado n. 274 CJF/STJ que prevê que “Os direitos da personalidade, regulados de maneira não exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1.º, III, da Constituição Federal”.
O direito ao esquecimento, segundo Pablo Dominguez Martinez, pelo fato de proteger e alcançar, em caso específico, isolada ou simultaneamente, alguns dos direitos já previstos no ordenamento jurídico nacional (honra, imagem, nome, privacidade), dá indícios de sua autonomia, configurando-se como uma nova figura de proteção aos direitos da personalidade, retirando seu fundamento de validade na cláusula geral da dignidade da pessoa humana.[12]
Desse modo, por estar imiscuído no contexto dos direitos da personalidade, o direito ao esquecimento deve ser defendido, garantido e realmente efetivado.
Para que isso ocorra é necessário compreender a própria caracterização e abrangência do referido instituto, o que será feito no tópico seguinte.
3 DIREITO AO ESQUECIMENTO
Os direitos da personalidade não são imutáveis e não se limitam a um rol taxativo. Nesse contexto surge o direito ao esquecimento, uma nova figura da personalidade, um direito inédito, com âmbito de proteção distinto dos demais, com características próprias e diferenciadas.[13]
3.1 CONTEXTUALIZAÇÃO E CONCEITO:
É atual e relevante o debate acerca da teoria do direito ao esquecimento não só no Brasil, mas em diversos ordenamentos jurídicos, caracterizando-se como um tema que causa grande repercussão, o que ocorre, inclusive, pelo fato de não estar positivado em nenhum ordenamento vigente, causando, assim, grandes confusões e embates quando se propõe sua aplicação.
A doutrina trata o caso Lebach[14] como o marco de aplicação da referida teoria, uma vez que o Tribunal Constitucional Federal alemão optou claramente por proteger o direito do autor de ser esquecido em relação ao crime praticado.[15] Por sua importância, transcreve-se a ementa do julgado:
1. Uma instituição de Rádio ou Televisão pode se valer, em princípio, em face de cada programa, primeiramente da proteção do Art. 5 I 2 GG. A liberdade de radiodifusão abrange tanto a seleção do conteúdo apresentado como também a decisão sobre o tipo e o modo da apresentação, incluindo a forma escolhida de programa. Só quando a liberdade de radiodifusão colidir com outros bens jurídicos pode importar o interesse perseguido pelo programa concreto, o tipo e o modo de configuração e o efeito atingido ou previsto. 2. As normas dos §§ 22, 23 da Lei da Propriedade Intelectual-Artística (Kunsturhebergesetz) oferecem espaço suficiente para uma ponderação de interesses que leve em consideração a eficácia horizontal (Ausstrahlungswirkung) da liberdade de radiodifusão segundo o Art. 5 I 2 GG, de um lado, e a proteção à personalidade segundo o Art. 2 I c. c. Art. 5 I 2 GG, do outro. Aqui não se pode outorgar a nenhum dos dois valores constitucionais, em princípio, a prevalência [absoluta] sobre o outro. No caso particular, a intensidade da intervenção no âmbito da personalidade deve ser ponderada com o interesse de informação da população.3. Em face do noticiário atual sobre delitos graves, o interesse de informação da população merece em geral prevalência sobre o direito de personalidade do criminoso. Porém, deve ser observado, além do respeito à mais íntima e intangível área da vida, o princípio da proporcionalidade: Segundo este, a informação do nome, foto ou outra identificação do criminoso nem sempre é permitida. A proteção constitucional da personalidade, porém, não admite que a televisão se ocupe com a pessoa do criminoso e sua vida privada por tempo ilimitado e além da notícia atual, p.ex. na forma de um documentário. Um noticiário posterior será, de qualquer forma, inadmissível se ele tiver o condão, em face da informação atual, de provocar um prejuízo considerável novo ou adicional à pessoa do criminoso, especialmente se ameaçar sua reintegração à sociedade (ressocialização).[16]
O direito ao esquecimento pode ser compreendido como o direito que uma pessoa possui de não permitir que um fato, ainda que verídico, ocorrido em determinado momento de sua vida, seja exposto ao público em geral, causando-lhe sofrimento ou transtornos.[17]
É importante assentar que o exercício do direito ao esquecimento não confere a ninguém a liberdade de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas assegura a possibilidade de discutir o uso que é feito dos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados.
Visualiza-se, pois, que o objetivo principal do direito ao esquecimento é a compreensão do alcance e limite temporal que as informações sobre um indivíduo possuem, sendo analisado de acordo com as peculiaridades do caso em questão. Até que ponto ainda podem ser veiculadas tais informações sem que deem margem à responsabilização no âmbito cível?[18]
A celeuma possui assento constitucional e legal, considerando que é uma conseqüência do direito à vida privada (privacidade), intimidade e honra, assegurados pelo artigo 5.º, inciso X, da Constituição Federal e pelo artigo 21 do Código Civil.
O reconhecimento do direito ao esquecimento também causa confronto entre a liberdade de informação e os direitos da personalidade, como será visto mais adiante.
3.2 O DIREITO AO ESQUECIMENTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO NACIONAL
A Constituição Federal mostrou sua vocação antropocêntrica no momento em que gravou, já em seu artigo 1.º, inciso III, a dignidade da pessoa humana como – mais que um direito – um fundamento da República, uma lente pela qual devem ser interpretados os demais direitos posteriormente reconhecidos.
O princípio da dignidade humana é multifacetado, apresentando, assim, uma multiplicidade de funções frente ao ordenamento jurídico, seja para fundamentá-lo, sendo o centro dele, de onde emanam os direitos de que os cidadãos podem usufruir e os deveres que terão de ser cumpridos, seja norteando e orientando a aplicação prática desse mesmo ordenamento, fazendo com que ele não se distancie dos objetivos traçados.
É a tutela da dignidade humana que dá margem para a ocorrência concreta de um direito ao esquecimento.
Com fundamento no citado princípio, na VI Jornada de Direito Civil promovida pelo CJF/STJ foi aprovado o enunciado n. 531, cujo teor e justificativa ora se transcrevem:
ENUNCIADO 531 – A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento.Artigo: 11 do Código CivilJustificativa: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detendo à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados.
A explícita contenção constitucional à liberdade de informação, fundada na inviolabilidade da vida privada, intimidade, honra, imagem e, de resto, nos valores da pessoa e da família, prevista no artigo 220, § 1.º, artigo 221 e no § 3.º do artigo 222 da Carta de 88, parece sinalizar que, no conflito aparente entre esses bens jurídicos de especialíssima grandeza, há, de regra, uma inclinação constitucional para soluções protetivas da pessoa humana, embora o melhor equacionamento deva sempre observar as particularidades do caso concreto.
O confronto entre liberdade de informação e os direitos da personalidade, a par de transitar também pelos domínios do direito constitucional, pode ser solucionado a partir da exegese dos artigos 11, 12, 17, 20 e 21 do Código Civil.
O direito ao esquecimento, como já afirmado, possibilita aos indivíduos o efetivo controle sobre fatos pretéritos ligados a suas vidas, permitindo que tomem o rumo que lhes apeteça sem que precisem ter seus nomes compulsoriamente associados a atividades, acontecimentos e notícias que não mais fazem parte de seu cotidiano atual.
Com relação à aplicação concreta do direito ao esquecimento em nosso sistema jurídico, o marco de incidência desta teoria se deu no julgamento de dois recursos especiais, ambos de relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão e ocorreram no dia 28 de maio de 2013.
3.3 RESP. N. 1.334.097-RJ: “ CASO CHACINA DA CANDELÁRIA”
J.G.F. ajuizou ação de reparação de danos morais em face da TV Globo Ltda. (Globo Comunicações e Participações S.A.).
O autor da ação foi denunciado por ter, supostamente, participado de homicídios em série ocorridos no ano de 1993 em frente à Igreja da Candelária, na cidade do Rio de Janeiro. Ao final do processo, submetido a Júri, foi absolvido por negativa de autoria.
Após anos do ocorrido e da absolvição de J.G.F., a emissora exibiu, no programa “Linha Direta”, a história do aludido caso, citou o nome do autor da ação e divulgou que ele tinha sido absolvido.
Na ação de reparação de danos, o autor afirmou que negou autorização para a realização de entrevista, pois não tinha interesse em reavivar tais memórias. Alegou ainda que a matéria pretendia levar ao público situação que ele já havia superado, treze anos após o evento, “reacendendo na comunidade onde reside a imagem de chacinador e o ódio social, ferindo, assim, seu direito à paz, anonimato e privacidade pessoal, com prejuízos diretos também a seus familiares”.
Em primeira instância o pedido de J.G.F. foi julgado improcedente, sendo reformado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que condenou a ré ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais).
O recurso especial interposto pela emissora foi julgado pela 4.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. A Turma admitiu o direito à indenização, considerando que, embora o crime apresente grande importância histórica, a exibição do nome e da imagem da pessoa absolvida não era indispensável para que os fatos fossem retratados de maneira fidedigna. O tribunal entendeu ainda que o ordenamento jurídico brasileiro é farto de previsões que reconhecem o direito ao esquecimento de fatos passados, como se vê na prescrição.
Por sua importância, transcrevem-se trechos da ementa do acórdão:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE IMPRENSA VS. DIREITOS DA PERSONALIDADE. LITÍGIO DE SOLUÇÃO TRANSVERSAL. COMPETÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DOCUMENTÁRIO EXIBIDO EM REDE NACIONAL. LINHA DIRETA-JUSTIÇA . SEQUÊNCIA DE HOMICÍDIOS CONHECIDA COMO CHACINA DA CANDELÁRIA. REPORTAGEM QUE REACENDE O TEMA TREZE ANOS DEPOIS DO FATO. VEICULAÇÃO INCONSENTIDA DE NOME E IMAGEM DE INDICIADO NOS CRIMES. ABSOLVIÇÃO POSTERIOR POR NEGATIVA DE AUTORIA. DIREITO AO ESQUECIMENTO DOS CONDENADOS QUE CUMPRIRAM PENA E DOS ABSOLVIDOS. ACOLHIMENTO. DECORRÊNCIA DA PROTEÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DAS LIMITAÇÕES POSITIVADAS À ATIVIDADE INFORMATIVA. PRESUNÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL DE RESSOCIALIZAÇÃO DA PESSOA. PONDERAÇÃO DE VALORES. PRECEDENTES DE DIREITO COMPARADO. [...] 2 Nos presentes autos, o cerne da controvérsia passa pela ausência de contemporaneidade da notícia de fatos passados, que reabriu antigas feridas já superadas pelo autor e reacendeu a desconfiança da sociedade quanto à sua índole. O autor busca a proclamação do seu direito ao esquecimento, um direito de não ser lembrado contra sua vontade, especificamente no tocante a fatos desabonadores, de natureza criminal, nos quais se envolveu, mas que, posteriormente, fora inocentado. [...]19. Muito embora tenham as instâncias ordinárias reconhecido que a reportagem se mostrou fidedigna com a realidade, a receptividade do homem médio brasileiro a noticiários desse jaez é apta a reacender a desconfiança geral acerca da índole do autor, o qual, certamente, não teve reforçada sua imagem de inocentado, mas sim a de indiciado. No caso, permitir nova veiculação do fato, com a indicação precisa do nome e imagem do autor, significaria a permissão de uma segunda ofensa à sua dignidade, só porque a primeira já ocorrera no passado, uma vez que, como bem reconheceu o acórdão recorrido, além do crime em si, o inquérito policial consubstanciou uma reconhecida "vergonha" nacional à parte. [...] (STJ, 4ª Turma. REsp. 1.334.097-RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. em 28.05.2013).
Em trecho de seu voto, o Ministro Luís Felipe Salomão asseverou que dizer que sempre e sempre o interesse público na divulgação de casos judiciais deve prevalecer sobre a privacidade ou intimidade dos envolvidos pode confrontar a própria letra da Constituição Federal, que prevê solução exatamente contrária, ou seja, de sacrifício da publicidade (artigo 5.º, inciso LX).[19]
Da leitura do acórdão, visualiza-se que a veracidade da notícia não confere a ela inquestionável licitude, muito menos transforma a liberdade de imprensa em um direito absoluto e ilimitado.
Aliás, a questão da veracidade e da licitude da informação e dos dados publicados também não é um obstáculo ao reconhecimento do direito ao esquecimento pelo Tribunal Supremo da Espanha. Na sentença n. 545/2015, referida Corte asseverou, in verbis:
El problema no es que el tratamiento de los datos personales sea inveraz, sino que pueda no ser adecuado a la finalidad con la que los datos personales fueron recogidos y tratados inicialmente. El factor tiempo tiene una importancia fundamental en esta cuestión, puesto que el tratamiento de los datos personales debe cumplir con los principios de calidad de datos no solo en el momento en que son recogidos e inicialmente tratados, sino durante todo el tiempo que se produce ese tratamiento. Un tratamiento que inicialmente pudo ser adecuado a la finalidad que lo justificaba puede devenir con el transcurso del tiempo inadecuado para esa finalidad, y el daño que cause em derechos de la personalidad como el honor y la intimidad, desproporcionado en relación al derecho que ampara el tratamiento de datos.[20]
No caso da “Chacina da Candelária”, fica claro que o direito ao esquecimento afirma-se, na verdade, como um direito à esperança, em absoluta sintonia com a presunção legal e constitucional de regenerabilidade da pessoa humana.
3.4 RESP. N. 1.335-153-RJ: “CASO AIDA CURI”
O segundo recurso especial julgado pelo Superior Tribunal de Justiça diz respeito ao caso “Aida Curi”.
Aida Curi foi abusada sexualmente e morta no ano de 1958 e, mais de cinquenta anos depois, a história do crime foi contada novamente no programa global Linha Direta – Justiça.
Os irmãos da vítima ajuizaram ação de reparação de danos morais, alegando que o fato fora esquecido no tempo, mas a emissora cuidou de reabrir antigas feridas, e de danos materiais, pela exposição indevida sem autorização com objetivo comercial e econômico.
A primeira instância decidiu pela improcedência do pedido, decisão que foi posteriormente mantida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Já no subsequente recurso especial, julgado pelo Tribunal da Cidadania, os irmãos Curi também alegaram a necessidade da proteção do direito ao esquecimento, que dessa vez não ensejou responsabilidade civil, pois a maioria dos integrantes da 4.ª Turma do Tribunal entendeu não ter havido dano concreto ou abalo moral à família Curi.
Na análise do caso concreto, o Tribunal decidiu dar prevalência a liberdade de imprensa, já que a matéria narrava fatos verídicos e a notícia histórica revelava repercussão nacional.
Em seu voto, o Min. Luís Felipe Salomão afirmou:
Em um crime de repercussão nacional, a vítima – por torpeza do destino – frequentemente se torna elemento indissociável do delito, circunstância que, na generalidade das vezes, inviabiliza a narrativa do crime caso se pretenda omitir a figura do ofendido.
Tal pretensão significaria, em última análise, por exemplo, tentar retratar o caso Doroty Stang, sem Doroty Stang; o caso Vladimir Herzog, sem Vladimir Herzog; e outros tantos que permearam a história recente e passada do cenário criminal brasileiro.
Com efeito, o direito ao esquecimento que ora se reconhece para todos, ofensor e ofendidos, não alcança o caso dos autos, em que se reviveu, décadas depois do crime, acontecimento que entrou para o domínio público, de modo que se tornaria impraticável a atividade da imprensa para o desiderato de retratar o caso Aida Curi, sem Aida Curi.
É evidente ser possível, caso a caso, a ponderação acerca de como o crime tornou-se histórico, podendo o julgador reconhecer que, desde sempre, o que houve foi uma exacerbada exploração midiática, e permitir novamente essa exploração significaria conformar-se com um segundo abuso só porque o primeiro já ocorrera.
Porém, no caso em exame, não ficou reconhecida essa artificiosidade ou o abuso antecedente na cobertura do crime, inserindo-se, portanto, nas exceções decorrentes da ampla publicidade a que podem se sujeitar alguns delitos.[21]
Inconformados com o resultado do julgamento, os familiares de Aida Curi interpuseram recurso extraordinário. O Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral da matéria, em decisão assim ementada:
EMENTA DIREITO CONSTITUCIONAL. VEICULAÇÃO DE PROGRAMA TELEVISIVO QUE ABORDA CRIME OCORRIDO HÁ VÁRIAS DÉCADAS. AÇÃO INDENIZATÓRIA PROPOSTA POR FAMILIARES DA VÍTIMA. ALEGADOS DANOS MORAIS. DIREITO AO ESQUECIMENTO. DEBATE ACERCA DA HARMONIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DO DIREITO À INFORMAÇÃO COM AQUELES QUE PROTEGEM A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A INVIOLABILIDADE DA HONRA E DA INTIMIDADE. PRESENÇA DE REPERCUSSÃO GERAL. (ARE 833248 RG, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, julgado em 11/12/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-033 DIVULG 19-02-2015 PUBLIC 20-02-2015)
Visualiza-se, assim, que o tema do presente artigo está pendente de análise pela mais alta Corte do país.
4 CRITÉRIOS ATUAIS UTILIZADOS NA PONDERAÇÃO ENTRE A LIBERDADE DE INFORMAÇÃO E O DIREITO AO ESQUECIMENTO
Antes de emitir juízos de valor acerca das decisões exaradas pelo Superior Tribunal de Justiça, é importante registrar que os critérios atuais de “pessoa pública”, “local público”, “fato criminoso” e “evento histórico” praticamente inviabilizam a implementação do direito ao esquecimento, já que conferem maior força e aplicabilidade à liberdade de informação, sem fazer uma análise mais profunda dos direitos em jogo, ignorando a proteção da dignidade da pessoa humana.[22] Vejamos, de forma sucinta, os critérios atuais.
4.1 PESSOA PÚBLICA
Um dos critérios mais aplicados pela jurisprudência diz respeito à mitigação dos direitos da personalidade de pessoas públicas. Assim, por este critério permite-se um abrandamento da esfera de proteção dos direitos individuais dos personagens notórios.[23]
Segundo a Resolução 1165, de 1998, da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa sobre o direito à vida privada, personagens públicos são as pessoas que desempenham um cargo público e/ou utilizam recursos públicos, e, em um sentido mais amplo, são todos aqueles que desempenham um papel na vida pública, seja na política, na economia, na arte, na esfera social, no esporte ou em qualquer outro campo.
4.2 LOCAL PÚBLICO
A jurisprudência pátria, em geral, entende que, se uma informação é obtida em local público, pode ser veiculada em virtude de “evidência” de interesse público na informação, mitigando-se a proteção dos direitos da personalidade.
Segundo Helder Galvão, tal critério não ampara a utilização de imagens extraídas sem o consentimento prévio do retratado. Ao contrário, a captação dessas imagens para fins de informação deve ser bem orientada, para que não reste configurado o seu uso indevido.[24]
Portanto, utilizar isoladamente o parâmetro “local público” não resolve o conflito entre a liberdade de informação e o direito ao esquecimento.
4.3 OCORRÊNCIA DE CRIME
Sustenta-se, em geral, que a existência de crime, por si só, já seria motivo suficiente para demonstrar o interesse público direto na divulgação da informação, mitigando-se, assim, o direito ao esquecimento.[25]
No entanto, como bem assevera Pablo Dominguez Martinez, a ocorrência de um crime não pode, por si só, significar a possibilidade de utilização dessa informação de forma ilimitada, ad aeternum.[26]
4.4 EVENTO HISTÓRICO
O critério do evento histórico, na maior parte das vezes, liga-se à ocorrência de um crime.
Da mesma forma que os demais critérios não devem ser analisados isoladamente, a utilização deste parâmetro também não resolve o conflito de direitos.
5 NOVOS CRITÉRIOS PARA A PONDERAÇÃO, SEGUNDO PABLO DOMINGUEZ MARTINEZ[27]
Como já mencionado, o direito ao esquecimento, por não ter previsão legal e uma sistematização que lhe confira autonomia, transparência e balizas mais evidentes, sofre resistência e é encarado com desconfiança.
Embora já seja utilizado de forma indireta, mesmo sem lhe atribuir nomenclatura ou independência, o direito ao esquecimento caminha no sentido de seu reconhecimento, em razão de ter objeto jurídico específico de proteção: a memória individual, em virtude da lembrança de fatos pretéritos sem qualquer utilidade e atualidade.[28]
Desta forma, com o intuito de conferir sistematização ao novo instituto jurídico, Martinez apresenta seus critérios, os quais serão agora analisados.
5.1 DOMÍNIO PÚBLICO
Para o mencionado autor, não há como permitir a divulgação de fatos passados, com a possibilidade de violação de direitos individuais fundamentais, se tais fatos, em alguma época, não tenham atingido ampla divulgação e publicidade.
Desse modo, a divulgação de qualquer foto, vídeo, dado, informação ou manifestação pretérita apresenta como requisito fundamental e condicionante a sua prévia divulgação. Em outras palavras, é necessário que a informação tenha alcançado em algum momento o conhecimento público.
Assim, se o fato pretérito já for de domínio público, avança-se ao próximo critério, no intuito de se averiguar se a balança penderá ao final para a legalidade do direito de informar ou se prevalecerá a proteção da memória individual, por meio da aplicação do direito ao esquecimento.
5.2 PRESERVAÇÃO DO CONTEXTO ORIGINAL DA INFORMAÇÃO PRETÉRITA
O segundo parâmetro que se propõe a permitir a divulgação de informação previamente propagada (já pertencente ao domínio público) é a sua total contextualização nos termos em que foi originariamente emitida.
A manutenção do contexto inicial ocorrerá se a redivulgação tratar do fato pretérito em sua plenitude, ou seja, preservando a situação passada, indicando minimamente o local, data e as condições em que o dado foi obtido, para que se possa analisar concretamente se a sua redifusão atende à veracidade e mantém todo o conjunto de fatores existentes no momento da formação do que se pretende rememorar.[29]
Quanto maior a distância temporal entre a origem da informação e sua redifusão, mais protegidos estarão a memória individual e os direitos da personalidade, em virtude da erosão evidente de qualquer utilidade e atualidade da informação.
Desse modo, caso a informação que se pretenda redivulgar (que deve ser de domínio público) não esteja totalmente contextualizada, o caminho que conduz à possibilidade de veiculação informativa será interrompido e prevalecerá o direito ao esquecimento. Contudo, caso haja plena contextualização, passa-se ao próximo critério.
5.3 PRESERVAÇÃO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE NA REMEMORAÇÃO
O terceiro parâmetro a ser avaliado no cotejo entre a liberdade de informação e o direito ao esquecimento, preservando-se a memória individual, é a necessidade imprescindível da divulgação de dados que poderiam atingir os direitos da personalidade. Portanto, sempre que possível, deve-se defender e salvaguardar nome, imagem, honra, privacidade e qualquer outro direito fundamental do indivíduo.
5.4 UTILIDADE DA INFORMAÇÃO
O Superior Tribunal de Justiça atribui o efetivo interesse público da informação à sua relevância e utilidade prática, que deve se traduzir em benefício para a sociedade: “A liberdade de informação deve estar atenta ao dever de veracidade, pois a falsidade dos dados divulgados manipula em vez de formar a opinião pública, bem como ao interesse público, pois nem toda informação verdadeira é relevante para o convívio em sociedade”.[30]
Aqui neste ponto é preciso fazer uma diferenciação entre interesse público e interesse do público.
O Tribunal Supremo da Espanha, na sentença n. 545/2015, assim se manifestou quanto à citada diferenciação:
Este interés no puede confundirse con el gusto por el cotilleo o la maledicencia. Como ha dicho algún autor, lo relevante no es tanto el "interés del público" (si se considerara que es amplio el sector de la población que quiera conocer las miserias de sus conciudadanos, aun las sucedidas mucho tiempo antes), sino el "interés público", esto es, el interés en formarse una opinión fundada sobre asuntos con trascendencia para el funcionamiento de una sociedad democrática. Este interés puede justificar que, cuando se trata de personas de relevancia pública, una información sobre hechos que afectan a su privacidad o a su reputación, aun sucedidos mucho tiempo atrás, esté vinculada a sus datos personales en un tratamiento automatizado como el que suponen las consultas a través de motores de búsqueda en Internet que indexan los datos personales existentes en las hemerotecas digitales. Las relaciones sociales se basan en buena medida en la información que tenemos de los demás, y el capital moral con que cuenta cada persona depende, en parte, del grado de confianza que inspire su trayectoria vital. Por eso, cuando concurra este interés en la información, está justificado que puedan ser objeto de tratamiento automatizado informaciones lesivas para la privacidad y la reputación, vinculadas a los datos personales, siempre que sean veraces, cuando se trata de personas de relevancia pública, aunque los hechos hayan sucedido hace mucho tiempo.[31]
Visualiza-se, pois, que é necessária que haja relevância social nos acontecimentos noticiados.
Nessa toada, para que a informação possa ser rememorada, não basta que o fato pretérito tenha sido de domínio público, que esteja contextualizado, que a divulgação dos dados pessoais seja indissociável do caso que se pretenda noticiar ou que a informação seja de efetivo interesse público, traduzida pelo seu caráter de utilidade, mas precisará observar ainda outro parâmetro essencial: a atualidade da informação.
5.5 ATUALIDADE DA INFORMAÇÃO
Toda e qualquer informação que já foi de interesse público, com a ação do tempo, sofre a erosão de sua utilidade e do interesse coletivo, perdendo força e importância. A partir desse momento, o pêndulo que favorecia e pesava para a divulgação da informação passa a ceder e a perder vigor. A ação do tempo transforma uma informação útil e de interesse social em “notícia velha”. Como bem sintetiza Martinez, a lembrança de fato pretérito é plenamente possível, pois o direito ao esquecimento não é absoluto, mas, em razão da ação do tempo, presume-se que a informação tenha perdido sua força em detrimento da proteção da memória individual.
Excetuando-se situações atípicas em que se permitiria a lembrança em nome da memória coletiva, deve-se ter em mente que a Constituição Federal tem como norte e base o princípio da dignidade da pessoa humana, sendo a memória individual um integrante essencial da condição da pessoa.
5.5.1 SUGESTÃO AO TRATAMENTO DOS PRAZOS DE UTILIDADE DE UMA INFORMAÇÃO
Como sugestão ao tratamento dos prazos de utilidade de uma informação, Martinez divide a padronização em dois grandes blocos, a saber: fatos criminosos e fatos não criminosos.
Na visão do autor, concebe-se a possibilidade de rememoração de um fato pretérito criminoso que, em razão de sua incindibilidade ou de sua grande repercussão, atingiu níveis históricos e de evidente interesse coletivo, fazendo parte do imaginário popular, ponderando-se favoravelmente à liberdade de informação em detrimento do direito ao esquecimento. Contudo, o mesmo não pode ocorrer quando se busca relembrar fatos típicos de menor reprovabilidade. Nesses casos, a utilização do prazo prescricional de cada crime serviria de auxílio e baliza ao interprete.
Já com relação aos fatos não criminais, não há uma norma que discipline o prazo hábil de rememoração de qualquer fato pretérito. Assim, diante do vácuo legislativo, o autor sugere a aplicação do prazo de dez anos previsto na legislação civil (artigo 205 do Código Civil) como parâmetro a ser utilizado pelo julgador no caso concreto.
6 ANÁLISE CRÍTICA DOS JULGADOS PROFERIDOS PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Após uma breve exposição dos casos que possibilitaram a aplicação do direito ao esquecimento no sistema jurídico brasileiro e dos critérios utilizados para se chegar a solução dos casos, questiona-se se a decisão exarada pelo Superior Tribunal de Justiça em ambos os processos se deu de forma coerente.
Assim como já afirmou o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, a transmissão de notícias atuais é a função principal da imprensa em uma democracia.
Evidente que os eventos delitivos são noticiáveis por sua própria natureza, independentemente da condição dos envolvidos pela notícia. Em regra, há interesse público na informação sobre os resultados das investigações policiais, o desenvolvimento do processo e o conteúdo da sentença. No entanto, tais informações vão perdendo sua justificação a medida que o tempo passa se os envolvidos carecem de relevância pública ou os fatos vinculados a essas pessoas carecem de interesse histórico.
Os julgamentos realizados pelo Tribunal da Cidadania apresentaram uma linha de raciocínio lógica, embora os casos tenham tido decisões diametralmente opostas.
Fazendo menção expressa ao caso Lebach, o STJ registrou que, se já não há interesse público na divulgação de um fato criminoso, por força do transcurso temporal, o autor do crime e a vítima tem direito ao esquecimento. Caso a divulgação dos acontecimentos pretéritos envolva um interesse público, como nos crimes históricos, a exemplo dos casos relatados, ofendido e agressor podem ter os nomes expostos, se forem indissociáveis da infração penal. Em contrapartida, na hipótese de não haver a necessidade de que o nome da vítima ou do autor do crime seja apresentado, o fato histórico pode ser contado, sendo preservados, o nome e imagem dos envolvidos.
Portanto, embora os casos tenham tido desfechos diversos, percebe-se coerência nas decisões exaradas pelo Superior Tribunal de Justiça.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A transmissão do conhecimento ou de informações tanto de uma pessoa a outra como de uma geração à seguinte, sempre foi um dos maiores desafios e também uma das maiores pretensões do ser humano desde sua origem. A posse de conhecimento e informação sempre significou poder e bem estar. A imprensa, a revolução tecnológica do século XX com a rádio, a televisão e a telefonia, e sobretudo a internet, colocou a disposição dos indivíduos a possibilidade de acessar em tempo real a informação e conhecimento a nível mundial.
Apesar da contribuição positiva de todas essas inovações tecnológicas, ficou cada vez mais frequente a transgressão de direitos fundamentais, especialmente os direitos da personalidade, através daquelas ferramentas.
O presente trabalho tratou de analisar o surgimento do direito ao esquecimento, demonstrando que o confronto entre liberdade de informação e os direitos da personalidade, a par de transitar pelos domínios do direito constitucional, pode ser solucionado a partir de dispositivos do Código Civil.
Demonstrou-se também que os direitos da personalidade são aqueles caracteres mais fundamentais e intrínsecos à condição humana, demandando, por isso, uma maior proteção pelo ordenamento.
O exercício do direito ao esquecimento deve ser visto como uma forma de proteger as pessoas e não como uma forma de cercear a liberdade de expressão, muito menos ocultar dados históricos relevantes. Daí a ponderação caso a caso dos interesses em xeque, isto é, a análise do conflito entre a liberdade de imprensa e o direito à intimidade, pois embora a primeira seja incensurável e goze de total liberdade, encontra barreiras em princípios como a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas.
Ainda não há critérios específicos na jurisprudência nem na doutrina quanto à aplicação do direito ao esquecimento. Nesse passo, o presente artigo buscou demonstrar as balizas já existentes e trouxe, ainda, como forma de aumentar o debate acerca do tema, os critérios propostos por Pablo Dominguez Martinez.
Com base nos critérios do referido autor (domínio público; preservação do contexto original da informação pretérita; preservação dos direitos da personalidade na rememoração; utilidade na informação e atualidade da informação), foi possível constatar o acerto das decisões do Superior Tribunal de Justiça nos recursos especiais de n. 1.334.097-RJ e n. 1.335.153-RJ.
Diante de tais constatações, conclui-se que o direito ao esquecimento encontra guarida no ordenamento jurídico pátrio e que para sua fiel aplicação deve ser analisado o caso concreto, ponderando-se os direitos em jogo.
8 REFERÊNCIAS
[1] NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional. 11. ed. Salvador: Ed. JusPoddivm, 2016. p. 337.
[2] AMARAL, Francisco. Direito civil. Introdução. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 249.
[3] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012. p. 87-88.
[4] Ibid., p. 90.
[5] CLAVERÍA GOSÁLBEZ, Luis Humberto. Notas para La construcción jurídica de los llamados derechos de La personalidad en Libro homenaje AL Profesor José Beltrán de Heredia y Castaño. Ediciones Universidad de Salamanca, 1984, p. 104-105.
[6] STANZIONE, P. Capacità e minore età..., cit., p. 90 e ss, DE CUPIS, A.; I diritti della personalità, Vol. I en CICU, Antonio-MESSINO, Francesco; Trattado di diritto civile e commerciale, Tomo IV-1, Milano, 1973, p. 28-33, LÓPEZ JACOISTE, José Javier. Una aproximación tópica a los derechos de La personalidad, en Anuario deDerecho Civil, 1986, p. 1067-1075 y BELTRÁN DE HEREDIA Y CASTAÑO, José. Construción jurídica de los derechos de La personalidad. Discursos leidos ante la Real Academia de Jurisprudencia y Legislación , Madrid, 1976, p. 29.
[7] CLAVERÍA GOSÁLBEZ, Luis Humberto. Op. cit. p. 105.
[8] LARENZ, Karl. El derecho general de La personalidad en La jurisprudencia alemana, en Revista de Derecho Privado, 1963, p. 639-641. Explica como na Alemanha a existência de uma regulação escassa e incompleta de direitos da personalidade e a reação contra a barbárie causada pelo menosprezo dos valores humanos na 2.ª Guerra Mundial, fez surgir vozes que pleitearam um direito geral da personalidade.
[9] LARENZ, Karl. Tratado de Derecho Civil. Parte General (Traducción y notas de Miguel Izquierdo y Macías-Picarea), Jaén, 1978, p. 97-98 y 160-165.
[10] TARTUCE, Flávio. Op. cit. p. 85.
[11] TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. t. I, p. 50.
[12] MARTINEZ, Pablo Dominguez. Direito ao esquecimento: a proteção da memória individual na sociedade da informação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p.36.
[13] MARTINEZ, Pablo Dominguez. Op. cit., p. 80.
[14] O caso ocorreu no interior da Alemanha, no ano de 1969. Na ocasião, três homens assassinaram brutalmente quatro soldados que guardavam um depósito de munição, ferindo ainda gravemente um quinto militar e roubando as armas e munições do referido depósito. Em relação aos três autores do crime, dois foram condenados à prisão perpétua e um deles, cuja conduta foi menos gravosa, foi condenado à seis anos de reclusão.
Quando o terceiro autor estava próximo de ser solto, um canal de televisão decidiu publicar um documentário retratando todo o ocorrido. O réu buscou o Poder Judiciário para impedir a exibição, sob o argumento de que o documentário dificultaria seu processo de ressocialização. O Tribunal Constitucional Federal acolheu o pleito do agente e impediu a transmissão do documentário.
[15] MORAES, Maria Celina Bodin de; KONDER, Carlos Nelson. Dilemas de Direito Civil-Constitucional:casos e decisões. Rio de Janeiro, 2012, p. 292.
[16] NOLETO, Mauro. O caso Lebach: o sopesamento. Disponível em: http://constitucional1.blogspot.com.br/2008/11/o-caso-lebach-o-sopesamento.html. Acesso em 15 de fevereiro de 2016.
[17] DIZER O DIREITO. O direito ao esquecimento. Disponível em:HTTP://dizerodireito.com.br/2013/11/direito-ao-esquecimento.html. Acesso em: 02 de maio de 2016.
[18] PEREIRA, Nayara Toscano de Brito. Direito ao esquecimento: o exercício de (re)pensar o direito na sociedade da informação contemporânea e as peculiaridades do debate entre o direito civil e a constituição.
[19] BRASIL, STJ, Resp. n. 1.334.097-RJ, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, 4.ª T., j. 28/05/2013.
[20] A versão na íntegra pode ser encontrada no site do Poder Judicial da Espanha. Disponível em: http://www.poderjudicial.es/search/doAction?action=contentpdf&databasematch=TS&reference=7494889&links=%222772%2F2013%22&optimize=20151019&publicinterface=true. Acesso em: 18/02/2016.
[21] BRASIL, STJ, Resp. n. 1.335.153-RJ, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, 4.ª T., j. 28/05/2013.
[22] MARTINEZ, Pablo Dominguez. Op. cit., p. 161.
[23] Ibid., p. 161.
[24] GALVÃO, Helder. Direito de imagem e fotojornalismo. In: SCHREIBER, Anderson (Coord.). Direito e mídia. São Paulo: Atlas, 2013, p. 32.
[25] GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2001, p. 88.
[26] MARTINEZ, Pablo Dominguez. Op. cit., p. 167.
[27] O tópico do presente artigo é baseado no capítulo 4 da obra “Direito ao esquecimento: a proteção da memória individual na sociedade da informação”.
[28] MARTINEZ, Pablo Dominguez. Op. cit., p. 173.
[29] ALMEIDA JÚNIOR, Vitor de Azevedo. A imagem fora de contexto: o uso de imagens de arquivo. In: SCHREIBER, Anderson (Coord.). Direito e mídia, cit., p. 166.
[30] BRASIL, STJ, REsp 984.803-ES, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3.ª T., julg. 19/08/2009, p. 07.
[31] A versão na íntegra pode ser encontrada no site do Poder Judicial da Espanha. Disponível em: http://www.poderjudicial.es/search/doAction?action=contentpdf&databasematch=TS&reference=7494889&links=%222772%2F2013%22&optimize=20151019&publicinterface=true. Acesso em: 18/02/2016.
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