A polêmica decisão faz ressurgir questões históricas já superadas. Conceber o direito como mera operação lógica, de confrontação de princípios e leis, inseridos em uma pirâmide normativa, não foi uma solução humanística.
"Palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução, alguns dizem que assim é que a natureza compôs as suas espécies."(Machado de Assis)
A recente decisão liminar do juiz da 14ª Vara Federal de Brasília, que autorizou o tratamento de “reversão sexual”, reflete um desconcerto, uma falta de diálogo, entre o Direito e as demais áreas do conhecimento humano.
Os fundamentos trazidos na decisão, se avaliados de uma perspectiva jurídico-positivista, não são tão cruéis. O magistrado sustentou que a liberdade científica está tolhida pela Resolução nº 01/90 do Conselho Federal de Psicologia. Esta norma, de índole infraconstitucional, há anos encarcera a possibilidade de investigação da sexualidade humana. A sexualidade é um desdobramento da dignidade da pessoa humana. Logo, merece atenção e estudo.
Fria a leitura hermenêutica do magistrado, porém coerente. Se a dignidade da pessoa humana e a liberdade científica são princípios constitucionais, como pode uma resolução do Conselho Federal de Psicologia afrontá-los?
A interpretação é lógica, coerente. Os fundamentos jurídicos são adequados, ao menos para o exegeta que apenas manobra a lei ao caso concreto. Trata-se de raciocínio, puramente, kelseniano.
Hans Kelsen concluiu que o Direito tem como fonte a norma pura. Nesta esteira, a ciência jurídica não deve se preocupar com fatores externos à norma. Ao magistrado, compete o dever de apenas interpretar o texto normativo e aplicá-lo ao caso julgado. É uma operação de lógica, algo aritmético. Não deve o exegeta se preocupar com subsídios científicos externos ao conteúdo normativo.
A decisão do magistrado pautou-se em uma operação lógica, de hermenêutica kelseniana. Desconsiderou, destarte, contribuições da própria psicologia exteriores à norma. Renegou, outrossim, valores humanísticos fundamentais à manutenção do Estado Democrático de Direito.
Faz-se necessário consignar que há alguns anos, o então ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, reconheceu a necessidade de se estudar o direito a partir das características humanas e das circunstâncias em que os casos estiverem inseridos.
Segundo ele, os juristas não devem interpretar as leis apenas com frieza técnica. Eles devem fazer o uso da consciência, “que é a harmonia entre os dois hemisférios do cérebro humano: o do pensamento, que é o produtor de ideias, e o do sentimento, que é o da emoção.”.
À época, sabiamente aduziu: “Sentença vem do verbo sentir. É preciso conhecer a objetividade jurídica a partir da subjetividade humana. O direito humanístico é a expressão de uma vida coletiva civilizada. Para que a lei saia do papel e se imponha no cotidiano é preciso que o intérprete também seja humanista. A Justiça não existe por si mesma, ela é acoplada a outros valores.”. [i]
É sabido que a orientação sexual é atributo da personalidade humana. Deveria, inclusive, ser categorizada, expressamente, no rol de Direitos da Personalidade, do artigo 11 do Código Civil.
A dignidade da pessoa humana, a igualdade, a liberdade, a solidariedade são princípios que conferem ao ser humano o direito a ser feliz e de ser diferente. Tem-se, assim, o direito à diferença sexual. O Estado Democrático Brasileiro é fundado em uma sociedade justa, igual e pluralista.
O desrespeito à diferença sexual já gerou muitas atrocidades e crueldades humanas. Rememore-se, aqui, o caso de Oscar Wilde, escritor e dramaturgo irlandês, que, no século XIX, manteve relacionamento homoerótico, pouco discreto e de reconhecimento público, com o jovem Lord Alfred Douglas. Julgado, o escritor e dramaturgo foi condenado a dois anos de trabalho forçado pela prática de sodomia. Após sua saída do cárcere, pouco lhe restou de seu projeto de vida. Necessitou foragir - se para Paris, onde adotou o pseudônimo de Sebastian Melmouth. Passou o resto dos seus dias em hotéis baratos, embriagando - se com absinto e morreu de forma miserável.
Vê-se que, por muito tempo, a homoafetividade foi sentida como perversão e distúrbio de ordem sexual, transtorno de identidade de gênero. Com traços ainda medievais, a homossexualidade masculina era vista como aberração, por conta do desperdício de sêmen, necessário à procriação. A homossexualidade feminina era menos pecaminosa, mera heresia, porque não se desperdiçava o gameta necessário à perpetuação da espécie.
A polêmica decisão faz ressurgir questões históricas já superadas. A discórdia parece ter suas raízes na falta de entrosamento do direito com outras áreas do conhecimento humanístico. O fato se agrava quando o juiz proclama que pesquisar a sexualidade poderá fortalecer a plena realização da dignidade do homem. Esse fortalecimento, no meu sentir, é inútil, já que estudos avançados da medicina vê a gênese da homoafetividade na genética. Se a origem não for cromossômica, pouco importa. O público LGBTS não pode servir de estudo científico, dir-se-ia, de “cobaia científica”, da polêmica “cura gay” [ii].
Os entraves científicos aludidos pelo magistrado não se justificam deste ponto de vista. Pelo contrário: o direito reconhece a proteção à personalidade humana. Atribui ao homem o Direito a ser feliz e diferente. E a psicologia, no mesmo sentido, avaliza a liberdade de orientação sexual.
Da forma como o magistrado decidiu até parece que a homoafetividade é uma questão de “opção”, de estilo de vida. E com esse raciocínio deduz a possibilidade de um “gay” ser “reorientado”.
A liminar deferida não foi cruel, mas também foi pouco feliz. A polêmica nasceu da falta de concórdia entre o direito e outras áreas do conhecimento científico. Conceber o direito como mera operação lógica, de confrontação de princípios e leis, inseridos em uma pirâmide normativa, não foi uma solução humanística. Vislumbra-se, hoje, que o direito estanque é um direito morto e contestável, uma vez que não atende as expectativas da sociedade.
Em tempos de evolução social, devemos ser mais Ayres Britto e menos Hans Kelsen...
Informações sobre o texto
Dedicado às Professoras Maria Berenice Dias e Teresa Ancona Lopes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário