segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Violência doméstica e familiar contra a mulher – A lei Maria da Penha: uma análise jurídica

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Por Valéria Pinheiro de Souza
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO………………………………………………………………………………………………….04
CAPÍTULO I – A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA…………………………………………………………..06
1.1- Conceito de violência…………………………………………………………………………………..06
1.2- A violência no Brasil…………………………………………………………………………………….09
1.3- Violência contra a mulher …………………………………………………………………………….12
1.4- Formas de manifestação da violência contra a mulher……………………………………. 15
CAPÍTULO II – SUJEITOS ATIVO E PASSIVO DOS CRIMES DOMÉSTICOS…………..18
2.1- A vítima segundo o sistema Penal Brasileiro ………………………………………………….18
2.2- Perfil do agressor dos delitos domésticos……………………………………………………… 19
2.3- Perfil das vítimas da violência doméstica e familiar …………………………………………21
CAPÍTULO III – DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS MULHERES………………………23
3.1-Direitos Humanos ………………………………………………………………………………………. 23
3.2- Dignidade da pessoa humana e violência doméstica ………………………………………25
3.3-Instrumentos de proteção dos direitos fundamentais das mulheres…………………….27
3.4- A Constituição Federal de 1988 e os Direitos Fundamentais…………………………….30
CAPÍTULO IV – A LEI “MARIA DA PENHA” – Nº 11.340/06……………………………………32
4.1-Origem e denominação da Lei Maria da Penha………………………………………………..32
4.2-Objetivos da Lei “Maria da Penha”………………………………………………………………….33
4.3-Constitucionalidade da Lei “Maria da Penha”…………………………………………………..34
4.4-Competência para processar e julgar a violência doméstica e familiar………………..36
4.5-Medidas Cautelares Penais…………………………………………………………………………..38
Conclusão………………………………………………………………………………………………………..44
Referências………………………………………………………………………………………………………45
INTRODUÇÃO
A violência doméstica é um tema bastante atualizado e instigante que atinge milhares de mulheres e crianças, adolescentes e idosos em todo o mundo, decorrente da desigualdade nas relações de poder entre homens e mulheres, assim como, a discriminação de gênero ainda presente tanto na sociedade como na família; Porém, sabe-se que esta questão não é recente, estando presente em todas as fases da história, mas apenas recentemente no século XIX, com a constitucionalização dos direitos humanos a violência passou a ser estudada com maior profundidade e apontada por diversos setores representativos da sociedade, tornando-se assim, um problema central para a humanidade, bem como, um grande desafio discutido e estudado por várias áreas do conhecimento enfrentado pela sociedade contemporânea. No Brasil, este tema ganhou maior relevância com a entrada em vigor da Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, também conhecida como “Lei Maria da Penha”, uma merecida homenagem a mulher que se tornou símbolo de resistência a sucessivas agressões de seu ex- esposo.
Diante de toda repercussão alcançada, principalmente pela mídia, surgiram muitos comentários equívocos, criando-se, algumas vezes, falsas expectativas, como se, a partir da criação de uma lei exclusiva para tratar do tema, fosse inverter, de uma hora para a outra, uma rota histórica da violência. Basicamente por ser a violência resultante de uma arraigada cultura machista e discriminatória, que subjuga as mulheres, este problema não se resolve de imediato, num simples passe de mágica pelo poder da lei.
Com base no importante peso do instrumento legal, ainda assim, dentro do ponto de vista técnico, é preciso averiguar e analisar a lei à luz dos princípios constitucionais, penais e processuais penais, para se apurar até que ponto o Estado tem legitimidade para intervir coercitivamente na liberdade dos cidadãos.
Fato é que a violência doméstica e familiar é uma questão histórica e cultural anunciada, que ainda hoje infelizmente faz parte da realidade de muitas mulheres nos lares brasileiros. Com a entrada em vigor da Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra as mulheres almeja-se que essa realidade mude e a mulher passe a ter instrumentos legais inibitórios, para que não mais seja vítima de discriminação, violência e ofensas dos mais variados tipos.
Vale ressaltar que para chegar ao ponto principal (violência doméstica) é necessário abordar a chamada “violência de gênero”, examinando sua origem, características, formas de manifestação e os possíveis fatores causadores dessa violência. Segundo Edison Miguel:
A violência baseada no gênero é aquela decorrente das relações entre mulheres e homens, e geralmente é praticada pelo homem contra a mulher, mas pode ser também da mulher contra mulher ou do homem contra homem. Sua característica fundamental está nas relações de gênero onde o masculino e o feminino, são culturalmente construídos e determinam genericamente a violência .
A violência doméstica não é marcada apenas pela violência física, mas também pela violência psicológica, sexual, patrimonial, moral dentre outras, que em nosso país atinge grande número de mulheres, as quais vivem estes tipos de agressões no âmbito familiar, ou seja, a casa, espaço da família, onde deveria ser “o porto seguro” considerado como lugar de proteção, passa a ser um local de risco para mulheres e crianças.
O alto índice de conflitos domésticos já detonou o mito de “lar doce lar”. As expressões mais terríveis da violência contra mulher estão localizadas em suas próprias casas onde já foi um espaço seguro com proteção e abrigo.
I A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
1.1 Conceito de violência.
A cada ano que passa, a violência reduz a vida de milhares de pessoas em todo o mundo e com isso, prejudica a vida de muitas outras. Ela não tem noção de fronteiras geográficas, raça, idade ou renda, atingindo assim, crianças, jovens, mulheres e idosos. A cada ano é responsável pela morte de milhares de pessoas em todo o mundo. Para cada pessoa que morre devido à violência, muitas outras são feridas ou sofrem devido a vários problemas físicos, sexuais, reprodutivos e mentais.
Neste primeiro item tem-se como ponto de partida a controvérsia, a complexidade da locução violência. Essa polêmica tem dado causa a muitas teorias sociológicas, antropológicas, psicológicas e jurídicas, por isso, a imensa dificuldade de um tratamento científico do tema.
O vocábulo violência é composto pelo prefixo vis, que significa força em latim. Lembra idéias de vigor, potência e impulso. A etimologia da palavra violência, porém, mais do que uma simples força, a violência pode ser compreendida como o próprio abuso da força. Violência vem do latim violentia, que significa caráter violento ou bravio. O verbo violare, significa tratar com violência, profanar, transgredir. Segundo Stela Valéria:
Estes termos devem ser referidos a vis, que mais profundamente, significa dizer a força em ação, o recurso de um corpo para exercer a sua força e, portanto, a potência, valor, a força vital .
É um ato de brutalidade, abuso, constrangimento, desrespeito, discriminação, impedimento, imposição, invasão, ofensa, proibição, sevícia, agressão física, psíquica, moral ou patrimonial contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela ofensa e intimidação pelo medo e terror. Segundo o dicionário Aurélio violência seria ato violento, qualidade de violento ou até mesmo ato de violentar. Do ponto de vista pragmático pode-se afirmar que a violência consiste em ações de indivíduos, grupos, classes, nações que ocasionam a morte de outros seres humanos ou que afetam sua integridade moral, física, mental ou espiritual. Em assim sendo, é mais interessante falar de violências, pois se trata de uma realidade plural, diferenciada, cujas especificidades necessitam ser conhecidas.
Vale ressaltar que a violência ocorre em vários contextos e áreas, como por exemplo, tanto no âmbito público quanto no âmbito privado. Segundo a OMS – Organização Mundial de Saúde -, a violência pode ser classificada em três modalidades:
-Violência inter-pessoal – este tipo de violência pode ser física ou psicológica, ocorrer tanto no espaço público como no privado. São vítimas crianças, jovens, adultos e idosos. Neste tipo de violência destaca-se a violência entre os jovens e a violência doméstica; violência contra si mesmo – é aquela em que a própria pessoa se violenta, causando a si mesmo lesões; violência coletiva – em suas diversas formas, recebe uma grande atenção pública, pois, há conflitos violentos entre nações e grupos, terrorismo de Estado ou de grupos, estupro como arma de guerra, guerras de gangues, em que ocorre em toda a parte do mundo; violência urbana – é aquela cometida nas cidades, seja em razão da prática de crimes eventuais, seja pelo crime organizado. É um problema que aflige vários países mundo afora.
Alguns cientistas sociais acreditam que a violência é própria da essência humana (do estado de natureza). Enquanto fenômeno estritamente humano, a violência não pode ser percebida fora de um determinado quadro histórico – cultural. Assim como as normas de conduta variam do ponto de vista cultural e histórico a depender do grupo que está sendo analisado, atos considerados violentos por determinadas culturas não são assim percebidos por outras, como por exemplo, as ablações do clitóris das crianças ocorrem diariamente em alguns países de religião islâmica, e são consideradas práticas normais pela maioria da população mulçumana, além de não serem criminalizadas, diferentemente da população ocidental, em que tem – se atos de violência e graves violações aos direitos humanos. Durante muito tempo, os castigos físicos infligidos a crianças e negros foram considerados normais. Assim, também ocorria a violência contra a mulher, que era considerada, até recentemente, como corriqueira e natural nas relações familiares em virtude do poder que o homem detinha sobre a mulher em face do pátrio poder e do casamento.
Pode-se afirmar que a conseqüência imediata disto, é que a violência é percebida de forma heterogênea e multifacetada, a partir da própria estrutura simbólica vigente na sociedade. Pode-se verificar também que a percepção contemporânea da violência foi ampliada não apenas do ponto de vista de sua intensidade, mas igualmente na perspectiva de sua própria extensão conceitual.
Convém então, dizer que as noções de violento e violência estão relacionadas à maldade humana, ou ao uso da força contra o fraco, o pobre ou o destituído. Nesse âmbito, o pobre, o fraco e o destituído surgem quase como que inocentes (como por exemplo, a criança que é espancada ou a mulher que é violentada), sendo uma questão de categorização moral do que de pertinente classificação econômica ou política. Segundo alguns autores pode-se afirmar que a violência, assim como a dor, a doença, a inveja, tem uma distribuição desigual na sociedade. Tem uma distribuição apenas associativa com certas categorias sociais. Elas sorriem para os pobres, muito mais do que para os ricos. A violência seria resultante de um desequilíbrio entre fortes e fracos. Isso envia um traço essencial do discurso de senso comum sobre a violência. A violência em suas mais variadas formas de manifestação afeta a saúde por que representa um risco maior para a realização do processo vital humano: ameaça a vida, produz enfermidade, danos psicológicos e pode provocar a morte.
1.2 A violência no Brasil.
Assim como em qualquer País ou em qualquer outra sociedade colonial, foram praticadas diversas modalidades de violência no Brasil. Fato é que, as várias culturas e sociedades não definiram e não definem a violência da mesma maneira, mas ao contrário, dão-lhe conteúdos diferentes, segundos os tempos e os lugares. De acordo com o estudo de Renata Álvares:
Certos aspectos da violência são percebidos da mesma maneira, porém, nas várias culturas e sociedades, formando o fundo comum contra o qual os valores éticos são erguidos .
O estudo da violência e dos mecanismos desenvolvidos por uma dada sociedade para combatê-la, constitui um campo aberto e fecundo para a investigação histórica e sociológica do Brasil. Pode-se considerar como ponto de partida a observação de que a violência não é um fenômeno recente na sociedade brasileira, estando presente em seu processo histórico, desde a colonização, desde a antiguidade clássica (greco- romana) até nossos dias atuais. Podemos perceber que, em seu centro, encontra-se o problema da violência e dos meios para evitá-la, diminuí-la e controlá-la.
A questão da violência ganhou um lugar tão importante na sociedade, que chegou a constituir uma palavra – chave, presente nos diferentes discursos na formação social brasileira. Pode-se citar como exemplo, as populações indígenas, vítimas iniciais desse processo, que foram escravizadas ou exterminadas pelas guerras empreendidas pelo conquistador português. O segundo alvo da violência colonizadora foi a população negra. Sabe-se que, entre os séculos XV e meados do século XIX, aproximadamente 30 milhões de negros foram violentamente retirados de seu continente de origem, traficados, mortos e transformados em escravos. Vale lembrar também, que houve a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, na virada do século XIX para o XX, com a conseqüente contribuição do mercado de trabalho capitalista que transformou a sociedade brasileira e fez com que aparecessem as idéias de trabalho e a disciplina, com acentuada força e poder. No século XX a história mundial foi marcada pela violência praticada por duas grandes guerras que vitimaram milhões de pessoas.
Nas palavras de Stela Valéria:
No início do século XXI, tinha-se a expectativa de que a sociedade estaria tão evoluída a ponto de conviver em paz e harmonia, porém, a mídia mostra totalmente o inverso, continuando a denunciar o aumento sem precedentes de várias formas de violência, seja pela prática de crimes, como assassinatos, seqüestros, roubos, estupros, ocorridos nos mais variados lugares brasileiros- é a chamada violência urbana, que vitimiza milhares de pessoas em todo o mundo .
Este tipo de violência é a mais visível modalidade que existe. A violência menos visível continua escondida e pouco reconhecida. Por exemplo, a diferença salarial entre homens e mulheres, entre pessoas brancas e negras, a prática da violência doméstica que está escondida no que se chama de senso comum. Em algum momento de nossas vidas, foi dito como são e o que valem as coisas e os seres humanos, como devem ser avaliados e tratados e nós aceitamos estas informações sem contestação. Quando o senso comum se cristaliza como modo de pensar e de sentir de uma sociedade, forma o chamado sistema de preconceitos. Esse sistema de preconceitos ou representações permeia todas as relações sociais, podendo afetar de forma profunda e negativa estabelecendo diferenças entre as pessoas, negando direitos fundamentais e gerando conflitos. Percebe-se com isto, que futuramente poderá acarretar efeitos devastadores como, por exemplo, perda do respeito pela pessoa humana, restrição à liberdade, introdução da desigualdade, etc. Diferentes preconceitos, na forma de representação, permeiam a sociedade. Estão ligados á classe social, gênero, etnia, faixa etária dentre outros. Com isto, pode-se chegar a seguinte conclusão: O preconceito de cor e gênero fazem com que as pessoas negras e as mulheres sejam consideradas inferiores, o que se reflete na deficiência de educação e, portanto, em menor acesso a empregos e salários bem remunerados.
O preconceito e a discriminação estão bem claros nas indicações sócio – econômicos que indicam que as mulheres, principalmente as negras são discriminadas no mercado de trabalho quando não conseguem empregos ou ocupam cargos secundários, apesar de serem bem qualificadas e instruídas ou ainda quando percebem salários inferiores quando ocupam os mesmos cargos que os homens e mulheres brancas.
Com isto, conclui-se que no Brasil há diversas formas de violência, como por exemplo, a violência urbana que é a violência praticada pela discriminação contra as minorias que são os negros, os índios, os idosos, as mulheres, crianças, etc; A violência social em decorrência dos altos índices de desigualdades sociais e pobreza, a violência doméstica, entre outras.
Não há um dado concreto ou uma única explicação sobre o crescimento da violência no Brasil. Pode-se dizer que, certamente se encontra associado à lógica da pobreza e da desigualdade socioeconômica. É fato que pobreza e desigualdade não justificam, isoladamente, o acréscimo da violência. Um exemplo disto, é a sociedade hindu, que é pobre e profundamente hierarquizada, mas não produz as mesmas manifestações de violência existentes no Brasil. Os níveis salariais no Sudoeste da Ásia também são extremamente baixos, mas a criminalidade nessa região tampouco é comparável aos índices brasileiros, no entanto, não há como negar a relevância da desigualdade sócio-econômica na explicação do crescimento da violência. Para chegar perto da compreensão do aumento da violência criminal no Brasil, exige-se a análise dos vários aspectos da denominada exclusão social, ou seja, os excluídos, estes que não são simplesmente rejeitados física, geográfica ou materialmente. Não somente do mercado e de suas trocas, mas de todas as riquezas morais e espirituais.
Com isso, chega-se à conclusão de que seus valores não são reconhecidos, ou seja, há também uma exclusão social cultural. Um forte exemplo é a pobreza que compreende um aspecto da exclusão; a exclusão social que inclui os idosos, deficientes físicos, os doentes crônicos dentre outras.
No tocante à violência contra a mulher e a violência doméstica, há uma explicação ampla para sua grande ocorrência no Brasil. A situação não se apresenta diferente dos demais países. Não está junta apenas a pobreza, desigualdade social ou cultural. Estas são modificações marcadas profundamente pelo preconceito, discriminação e abuso de poder do agressor para com a vítima, que geralmente são as mulheres, as crianças e os idosos, ou seja, pessoas que em razão das suas peculiaridades (uma pessoa idosa não consegue agir como uma pessoa jovem, assim como uma criança não conhece meios para se defender), estão em situação de vulnerabilidade na relação social e isto é independentemente do país em que estejam morando. Estes são alguns elementos nucleares desta forma de violência. Em virtude do quantum despótico existente na maior parte dos relacionamentos afetivos, desta situação de força e poder que, geralmente, detém o agressor em relação á vítima, esta é manipulada, subjugada, violada e agredida psicológica, moralmente ou fisicamente.
1.3 Violência contra a mulher.
Como abordado anteriormente, a violência contra a mulher não é nenhuma novidade diante da atual sociedade. Desde os tempos mais remotos a violência já se fazia presente, não só no Brasil como também nos demais países. A igreja evidentemente teve uma grande influência na idéia de submissão da mulher ao homem. Na Bíblia Sagrada, em seu primeiro livro chamado “Gênesis”, a mulher é construída a partir de uma costela do homem, vindo depois da existência deste, para fazer-lhe companhia. No mesmo livro bíblico, o primeiro pecado do mundo é provocado pelo desejo feminino e pela desobediência de Eva ao oferecer do fruto proibido a Adão.
A descrição da escritura bíblica impõe uma condição secundária à mulher, e ainda, atribui-lhe a culpa pela quebra do encanto do paraíso. Fato é, que é uma interpretação literal, e que teologicamente, não está correspondendo à verdadeira mensagem cristã. Porém, difundiu-se, a partir desta simples interpretação, a condição de submissão feminina, ante a ascendência do homem em todas as relações.
Antigamente, as mulheres eram tratadas como propriedade dos homens, perdendo assim, a autonomia, a liberdade e até mesmo a disposição sobre seu próprio corpo. Há registros na história de venda e troca de mulheres, como se fossem mercadorias. Eram escravizadas e levadas à prostituição pelos seus senhores e maridos.
O século XX foi definitivo para o reconhecimento de um amplo leque de direitos humanos, responsável por profundas modificações na conduta dos diversos segmentos sociais em diferentes regiões do nosso planeta.
Os frutos históricos colhidos pelos movimentos das mulheres no século XX são bastante evidentes. Um dos principais resultados é a positivação dos direitos humanos das mulheres junto à estrutura legislativa da ONU e da OEA , por meio de edição de inúmeras declarações e pactos, a partir de 1948, em que foi publicada a Declaração Universal de Direitos Humanos. A partir daí, desde a Declaração Universal de 1948, o sistema patriarcal ocidental passou gradativamente, nas legislações posteriores, a reconhecer a diversidade biológica, social e cultural dos seres humanos, criando declarações e pactos específicos para as mulheres.
Até a década de 1980, no Brasil e em outros países do mundo, o estudo sobre a violência contra a mulher tinha como paradigma predominante o fato de tratar-se de um problema privado, em que as ações do Estado se limitavam à sua capacidade de intervenção. A definição de “violência contra a mulher” mais utilizada atualmente expressa na Conferência de “Beijing”, segundo Sonia, Rovinski:
É qualquer ato de violência que tem por base o gênero e que resulta ou pode resultar em dano ou sofrimento de natureza física, sexual ou psicológica, incluindo ameaças, a coerção ou a privação arbitrária da liberdade, quer se produzam na vida pública ou privada.
Este conceito abrange as mais variadas agressões de forma física, sexual e psicológica, com os mais variados agentes perpetradores, incluindo os de relacionamento íntimo e familiar, pessoas da comunidade em geral, e aqueles exercidos e tolerados pelo Estado. Porém, apesar dos avanços na consolidação dos direitos da mulher no mundo, no início do século XXI ainda não se pode dizer que as mulheres conquistaram uma posição de igualdade perante os homens. O sexo masculino continua desfrutando de maior acesso à educação e a empregos bem remunerados. Além disso, a violência física e psicológica contra a mulher continua a fazer parte do cotidiano da nossa vida moderna.
Populações que historicamente tiveram seus direitos negados passam a dispor de proteção legal capaz de assegurar-lhes amplos direitos fundamentais. Mulheres, crianças e idosos assumem, cada vez mais, a condição de cidadãos e sujeitos de direitos. A dignidade humana e o princípio da igualdade são as molas mestras da ordem jurídica, política e social do Brasil e, paulatinamente, começam a delinear os contornos de uma nova nação, permeando espaços públicos e privados, muito deles considerados inatingíveis na égide das velhas ordens constitucionais.
Não se pode deixar de ressaltar que são inegáveis os avanços cognitivos e as conquistas obtidas pelo segmento feminino ao longo das últimas décadas do século passado, com a ampliação de sua participação na esfera pública, expressa pelo ingresso efetivo nos campos de trabalho, cultura e educação. Mas, infelizmente, ainda nos dias atuais, são muitas as barreiras para impedir a plena inclusão social da mulher. Fato é, que isto está relacionado a posições de poder, liderança e negociação, assim como de ocupação de espaços do mundo público, sobretudo, onde se tem de tomar decisões técnicas, científicas, empresariais ou políticas.
No desabrochar do século XXI, infelizmente, assistimos a uma avalanche de atos de violência que afeta a vida de milhares de mulheres em seus vários estágios de desenvolvimento, acarretando prejuízos, por vezes, irreversíveis à saúde física e mental.
No que tange ao conceito de violência contra a mulher importante é que se faça a distinção desta, com violência doméstica e familiar, pois aparentemente possuem o mesmo significado. A violência contra a mulher é um conceito mais amplo, podendo ser considerado crime ou não. É a chamada violência de gênero, pois abrange as várias formas de violência como a violência sexual, moral, espiritual, familiar, doméstica, entre outras. Diferentemente da violência doméstica e familiar, sendo esta, uma das modalidades da violência contra a mulher.
1.4 Formas de manifestação da violência contra a mulher.
As formas de manifestação da violência contra a mulher estão expressas na Lei 11.340 de 07/08/2006, a qual é fruto da ratificação pelo Brasil da Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a Violência contra a mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará, em novembro de 1995.
A lei ampliou as formas de manifestação da violência doméstica e familiar contra a mulher, além das mais conhecidas e praticadas que são a violência física, psíquica, moral, sexual e patrimonial.
A atitude do legislador foi justa, pois a vítima fica em uma situação difícil face à sua família, ao agressor e principalmente diante da sociedade. Na maioria dos casos de violência contra a mulher existe uma relação de dependência econômica e financeira.
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, “Convenção de Belém do Pará”, entende que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica, podendo ocorrer tanto no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se entre outras formas, o estupro, maus- tratos e abuso sexual; ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada dentre outras; perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.
A Conferência de “Beijing” aponta como tipo de violência contra a mulher à violência física, sexual e psicológica na família; a violência física, sexual e psicológica praticada pela comunidade em geral, como no trabalho, em instituições educacionais e outros âmbitos; a prostituição forçada; a violência física, sexual ou psicológica perpetrada pelo Estado; as violações em conflitos armados; a esterilização forçada; o aborto forçado e o infanticídio.
A Recomendação Rec (2002) nº 5 do Conselho da Europa afirma que a violência contra a mulher é a violência perpetrada na família e no lar, e nomeadamente as agressões de natureza física ou psíquica, os abusos de natureza emocional e psicológica e o abuso sexual, o incesto, a violação entre cônjuges, parceiros habituais, parceiros ocasionais ou co – habitantes, os crimes cometidos em nome da honra, a mutilação de órgãos genitais ou sexuais femininos, bem como outras práticas tradicionais prejudiciais às mulheres, tais como os casamentos forçados; a violência perpetrada pela comunidade em geral, nomeadamente a violação, o abuso sexual, o assédio sexual e a intimidação no local de trabalho, nas instituições ou em outros locais, o tráfico de mulheres com fim de exploração sexual e econômica bem como o turismo sexual ; a violência perpetrada ou tolerada pelo Estado ou os agentes do poder público; a violação dos direitos fundamentais das mulheres em situação de conflito armado, particularmente a tomada de reféns, a deslocação forçada, a violação sistemática, a escravatura sexual, a gravidez forçada e o tráfico com o fim de exploração sexual e econômica.
Após a descrição das várias classificações contidas em tratados internacionais e pela doutrina brasileira e estrangeira no que diz respeito aos tipos de violência contra as mulheres, conclui-se que:
• Violência física consiste em atos de cometimento físico sobre o corpo da mulher, podendo ser através de tapas, chutes, socos, queimaduras, mordeduras, punhaladas, estrangulamentos, mutilação genital, tortura, assassinato, ou seja, qualquer conduta que ofenda a integridade física ou saúde corporal da mulher; violência psicológica é a ação ou omissão destinada a degradar ou controlar as ações, comportamentos, crenças e decisões de outra pessoa por meio de intimidação, manipulação, ameaça direta ou indireta, dentre outras, ou seja, é a violência entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto – estima; violência sexual se identifica com qualquer atividade sexual não consentida, incluindo também o assédio sexual, ou seja, é qualquer conduta que constranja a mulher a manter conjunção carnal não desejada, mediante intimidação,coação, etc.; violência moral, consiste no assédio moral, geralmente onde o patrão ou chefe agride física ou psicologicamente seu funcionário com palavras, gestos ou ações, sendo considerada qualquer conduta que configure injúria, calúnia ou difamação; violência patrimonial que é aquela praticada contra o patrimônio da mulher, sendo muito comum nos casos de violência doméstica e familiar (dano) , ou seja, é a conduta que configura retenção, subtração, destruição dos bens da vítima; violência institucional é a praticada em instituições prestadoras de serviços públicos, como hospitais, postos de saúde, escolas, delegacias, no sistema prisional, etc ; violência de gênero, é aquela praticada em razão de preconceito e discriminação; e por fim a violência doméstica e familiar que é a ação ou omissão que ocorre no espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas. É aquela praticada por membros de uma mesma família. Vale lembrar que a família fica entendida com indivíduos que são ou se consideram parentes, unidos por laços naturais ou por afinidade.
II SUJEITOS ATIVO E PASSIVO DOS CRIMES DOMÉSTICOS
2.1- A Vítima segundo o Sistema Penal Brasileiro.
Conforme expõe Stela Valéria,
A palavra vítima vem do latim victima, que significa a pessoa ou animal sacrificado ou destinado aos sacrifícios, como pedido de perdão dos pecados humanos. É derivada do verbo vincire, que significa atar ou amarrar, vez que o animal ou pessoa a ser sacrificado deveria ser amarrado.
De acordo com o Dicionário Aurélio, vítima significa “homem ou animal imolado em holocausto aos deuses. Pessoa arbitrariamente condenada à morte, ou torturada. Pessoa ferida ou assassinada, ou que sucumbe a uma desgraça, ou morre em acidente, epidemia. Tudo quanto sofre dano” .
Pode-se perceber que o conceito de vítima sempre foi o da pessoa sujeita a sofrer qualquer tipo de conseqüência, seja por ter feito algum ato ilícito ou cometido alguma infração. Para a vitimologia atual, o conceito é mais amplo, onde são considerados vítima toda a pessoa física, jurídica ou ente coletivo prejudicado por ação ou omissão humana que constitua infração penal.
Daí entende-se que vítimas são as pessoas que coletivamente ou individualmente, tenham sofrido danos, tais como lesões físicas, mentais, emocionais, etc.
O Sistema Penal Brasileiro tem adotado o discurso da ressocialização do criminoso, sem ter maiores preocupações com a vítima, abandonada a sua própria sorte. Tal postura discordava das diretrizes recomendadas pelo direito internacional, desde a Declaração de 1948 e de vários tratados que lhe sucederam. Embora tenha havido alguns avanços nesta área, a vítima ainda ocupa posição de desvantagem. Seus interesses são relegados a um plano absolutamente secundário. No processo penal sua participação restringe-se a prestações de declarações em juízo, ou seja, uma ferramenta utilizada para que se alcance resultado que o sistema almeja.
2.2 Perfil do agressor dos delitos domésticos
O agressor é, na maioria dos casos, o homem; Não é que não existam mulheres agressoras, existem, porém, na maioria absoluta dos casos, o homem é o agressor. Apesar de existirem poucos casos em que as mulheres são sujeitos ativos do crime, quase sempre aparecem como vítimas da violência doméstica. O agressor possui, como característica predominante, o fato de manter ou ter mantido relação afetiva íntima com a vítima.
O agressor pode ser qualquer tipo de homem, desde o mais sério e culto ao menos favorecido. Porém, em maioria absoluta, os que mais violentam as mulheres são os mais cultos em que, aparentemente, é um homem acima de qualquer suspeita. Aparenta ser um cavalheiro, de reputação ilibada e idônea, tanto no seu ambiente social e de trabalho, não demonstrando nenhuma atitude violenta, esta que, só aparece dentro de casa. Geralmente quando a mulher que foi vítima da violência pede algum tipo de ajuda, alguns vizinhos não acreditam que este “homem cavalheiro”, tenha sido capaz de tal atitude, pois é difícil associar a imagem pública do homem respeitável à do espancador. Do ponto de vista psicológico, esses homens têm uma insegurança muito grande em relação à própria virilidade, ao papel masculino. São muito possessivos e ciumentos, vendo então as mulheres como sua propriedade e não agüentam perder o controle sobre elas, descreve a psicóloga Ruth Gheler . Em geral, de acordo com o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou a questão da violência contra a mulher no país, os agressores são filhos de pais excessivamente autoritários e eles próprios foram vítimas de violência física na infância .
Pode-se perceber então, que inexiste um perfil característico de um homem agressor em que a sociedade possa apontar quem é um agressor, não está escrito na testa deles, porém apesar de ser difícil determinar as razões ou motivações que podem desencadear este tipo de violência, pode-se destacar que: a maioria dos homens têm necessidade de controle ou dominação sobre a mulher; possuem sentimento de poder frente à mulher; têm receio da independência da mulher; a maioria deles liberam a raiva em reposta à percepção de que estaria perdendo a posição de chefe da família .
Os estudos indicam que não existe coincidência significativa em relação à idade, nível social, educação. Trata-se apenas de um grupo heterogêneo. Apesar disso, é possível afirmar, segundo as diferentes investigações, que o maior índice de agressores se detecta na classe média – baixa .
Tratando-se de violência doméstica praticada pela mulher é estatisticamente inexpressiva, inferior a 1% dos casos registrados.
Até hoje não foram publicadas pesquisas científicas significativas sobre as patologias psiquiátricas dos agressores. Porém, é fato que eles se dividem entre portadores de diversos tipos de transtornos como, por exemplo, transtorno explosivo da personalidade, dependentes químicos e alcoólatras.
Outro aspecto interessante e muito característico nos agressores é, a tendência à minimização da agressão e negação do comportamento agressivo, ou seja, muitos homens que batem em suas companheiras, afirmam que não o fazem; Outro aspecto é atribuir à vítima a culpa por ter agido com extrema violência e tal comportamento.
Vale ressaltar que o consumo de álcool é muito presente nos relatos das vítimas e seus agressores. Uma pesquisa realizada por J. Madina, Garrido Stangeland e Redondo constataram que a taxa de alcoolismo no grupo de agressores estudados era de 60% .
Os maus tratos habituais aparecem quando o agressor abusa ou tem uma dependência muito forte ou absoluta com o álcool, devido aos efeitos violentos que podem desencadear nessa pessoa. Aquela pessoa que abusa do consumo do álcool ainda tem alguma capacidade de controle e de abstinência. Já o dependente absoluto, perdeu essa capacidade. Passar de uma situação de controle, para a dependência não é percebida pelo sujeito que está embriagado, achando que é sempre capaz de controlar a situação.
Conclui-se, então que o álcool tem um papel fundamental nas condutas dos agressores, chegando a ser um fator desencadeante de algumas situações de violência na família.
2.3 Perfil das vítimas da violência doméstica e familiar
Os diferentes estudos sobre as mulheres vítimas de maus-tratos afirmam que não existe um perfil determinado de vítima e de agressor. Porém, as conclusões extraídas das diversas pesquisas analisadas mostram alguns padrões comportamentais que se exteriorizam freqüentemente nos casos de violência doméstica.
São eles: violência se manifesta de maneira reiterada, sendo um padrão de conduta continuado; os agressores são geralmente homens, maridos, ex-maridos, companheiros ou ex-companheiros das vítimas; os indivíduos que foram vítimas de maus-tratos na infância reproduzem estas condutas, e, por isso, têm mais possibilidades de serem agressores, agredindo sua própria companheira; as agressões sofridas não são conhecidas até transcorrer um longo período de tempo; o crime doméstico se manifesta como violência física,psicológica, sexual, patrimonial ou moral; às vítimas possuem baixa auto-estima e vários problemas de saúde, na maioria dos casos, as mulheres são chantageadas por seus maridos e freqüentemente cedem às pressões, sentindo-se incapaz de agir; às vítimas vivem em estado de pânico e temor. Precisam de ajuda externa para assumir seu problema e encontrar soluções alternativas .
A violência traz conseqüências gravíssimas para as vítimas, que vão muito além de traumas óbvios das agressões físicas. A violência conjugal tem sido associada com o aumento de diversos problemas de saúde como baixo peso dos filhos ao nascer, queixas ginecológicas, depressão, suicídio, entre outras .
No Brasil, como em vários outros países, a delimitação dos prejuízos psicológicos decorrentes de situações traumáticas é a matéria recente, e, portanto, não está claramente especificada na legislação. O que gera o dano psíquico é a ameaça à própria vida ou à integridade psicológica, uma lesão física grave, a percepção do dano com internacional, a perda violenta de um ente querido e a exposição ao sofrimento de outros, ainda que não seja próxima afetivamente .
Dentre as mais diversas pesquisas sobre as vítimas da violência doméstica e familiar quanto à caracterização da vítima percebe-se que:
a) a maioria das mulheres tem uma união consensual (57%);
b) 65% delas tem filhos com este parceiro;
c) cerca de 40% são do lar e 60% trabalham fora;
d) sua idade varia de 15 a 60 anos, mas a maioria é jovem (21 e 35 anos – 65%);
e)são brancas.
Em 88% dos casos em que essas agressões foram presenciadas pelos filhos, em 6% não presenciaram e 6% não souberam responder .
Estudos Brasileiros salientam, com maior ênfase, a baixa renda das mulheres vítimas de violência doméstica. Relatam que a renda familiar predominante é entre um a três salários – mínimos (42,6%), seguida pela faixa dos quatro a seis salários (36,1%) e uma categoria de 39,3% que não exercia atividades remuneradas .
As pesquisas também demonstraram que a mulher que trabalha fora de casa é mais consciente da situação. Isto porque o exercício de atividade profissional assegura-lhe independência econômica, encorajando-a a reagir e buscar soluções para o seu problema. As estatísticas da violência doméstica nas grandes cidades coincidem com as do interior do país. Está provado que a violência doméstica é um fenômeno global, presente tanto nos países desenvolvidos, como nos subdesenvolvidos e nos que estão em desenvolvimento. O caso brasileiro está correlacionado à pobreza, baixa escolaridade e dependência econômica das mulheres. Os homens aparecem como maiores agressores. Além disso, o preconceito e a discriminação estão na origem da violência contra a mulher. Muitas mulheres sentem-se envergonhadas de admitir, mesmo para amigos, que um membro de sua família (na maioria dos casos o companheiro) pratica violência, e em assim sendo, não o denunciam.
III DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS MULHERES
3.1 Direitos Humanos
Os direitos humanos são os direitos e liberdades básicos de todos os seres humanos. Normalmente o conceito de direitos humanos tem a idéia também de pensamento e de expressão, e a igualdade perante a lei.
A expressão Direitos Humanos já diz, claramente, o que isto significa. Direitos Humanos são os direitos do homem, ou seja, são direitos que visam resguardar os valores mais preciosos da pessoa humana, direitos que visam resguardar a solidariedade, a igualdade, a fraternidade, a liberdade, e a dignidade da pessoa humana. No entanto, apesar de facilmente identificado, a construção de um conceito que o defina, não é uma tarefa fácil, em razão da amplitude do tema. Segundo alguns autores, os direitos humanos seriam como uma das previsões absolutamente necessárias a todas as Constituições, no sentido de consagrar o respeito à dignidade humana, garantir a limitação de poder e visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana”, ou ainda, direitos humanos seriam uma idéia política com base moral e estão intimamente relacionados com os conceitos de justiça, igualdade e democracia. Eles são uma expressão do relacionamento que deveria prevalecer entre os membros de uma sociedade e entre indivíduos e Estados. Os Direitos Humanos devem ser reconhecidos em qualquer Estado, grande ou pequeno, pobre ou rico, independentemente do sistema social e econômico que essa nação adota. ”
Assim como no Direito Brasileiro existe a proteção dos direitos humanos, há também no Direito Internacional esta proteção, sendo recente na história contemporânea. Surgiu no Pós – Guerra como resposta às atrocidades cometidas durante o nazismo . É naquele cenário que se desenvolve o esforço de reconstrução dos direitos humanos como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea.
Os direitos humanos fundamentais visam a resguardar os valores mais preciosos da pessoa humana, ou seja, a vida, a igualdade, a liberdade e a dignidade humana.
A atual Constituição da República Federativa do Brasil conferiu dignidade e proteção especiais aos direitos fundamentais, sendo considerada um verdadeiro marco histórico nesta seara. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, conforme o artigo 5º, § 1º , permitindo inclusive a conclusão de que os direitos fundamentais estão protegidos não apenas diante do legislador ordinário, mas também contra o poder constituinte reformador, por integrarem o rol das denominadas cláusulas de irredutibilidade ou mínimas.
O artigo 5º, § 2º, estabelece que os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ele adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Essa norma possibilita que outros direitos, ainda não expressamente previstos na Constituição, sejam considerados direitos fundamentais, este que pode ser entendido como o conjunto de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana .
3.2 Dignidade da Pessoa Humana e Violência Doméstica.
O grande marco para os direitos fundamentais no século XX foi, sem sombra de dúvida, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, elaborada após a 2ª Guerra Mundial, sob o reflexo da indignação da comunidade internacional com as atrocidades praticadas com o povo judeu. Foi a primeira vez em que as Nações se uniram para discutir e elaborar uma norma de proteção dos direitos humanos, comum a todos. O Brasil é signatário desta declaração e de várias outras convenções e pactos de direitos humanos, o que constitui um grande avanço para a democracia e para a legislação Brasileira.
Com a elaboração da Declaração Universal de 1948, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros tratados internacionais voltados à proteção de direitos fundamentais, formando-se então, o sistema normativo global de proteção dos direitos humanos, no âmbito das Nações Unidas.
Esse sistema normativo, por sua vez, é integrado por instrumentos de alcance geral (como os pactos internacionais) e por instrumentos de alcance específicos como as Convenções Internacionais que buscam proteger a determinados grupos de pessoas mais vulneráveis a violações de direitos humanos, como é o caso dos negros, das crianças e das mulheres.
Os Direitos Fundamentais e a dignidade da pessoa humana são conceitos correlativos e interdependentes, seja no âmbito do direito público, seja no âmbito do direito privado, onde o ser humano é o grande protagonista das sociedades organizadas e o reconhecimento e proteção a sua dignidade são considerados a grande meta das nações democráticas. A idéia de dignidade está na origem de todos os direitos fundamentais que se sucederam a partir da Revolução Francesa. Mesmo hoje em dia é ela que dá o substrato necessário à concretização dos direitos de liberdade, igualdade e solidariedade, pois está subjacente a todas as normas que integram o catálogo de direitos fundamentais da Constituição Brasileira .
Atualmente, coexistem dois sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, o sistema universal, de que fazem parte os Estados integrantes das Nações Unidas – ONU e o sistema regional em que são associados vários países. São eles: o sistema Europeu (No Conselho da Europa), o sistema americano ( na Organização dos Estados Americanos – OEA), o sistema africano ( na Organização para a Unidade Africana) e o sistema árabe ( na Liga dos Estados Árabes). Somente os países asiáticos encontram-se desprovidos de uma convenção regional de direitos humanos. Tais sistemas agrupam países que se relacionam entre si política, econômica e culturalmente ou que compartilham uma mesma declaração de princípios. Cada sistema é autônomo em relação aos demais, embora se estruturem, com base nos princípios instituídos pela Declaração Universal e pelos Pactos Internacionais das Nações Unidas.
A violência doméstica praticada contra a mulher é um concreto exemplo de violação da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais. Tão verdade é, que a recente lei 11.340 de 07/08/2006 (Lei Maria da Penha), teve de se adequar aos documentos internacionais de proteção aos direitos das mulheres, em seu artigo 6º, onde afirma taxativamente que “a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos”.
3.3 Instrumentos de proteção dos direitos fundamentais das mulheres.
Provadas empiricamente a situação de hipossuficiência e discriminação sofrida pelas mulheres em vários países do mundo, foi necessário a elaboração de um sistema especial de proteção dos seus direitos humanos, através de convenções e pactos internacionais. São eles: A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a mulher; a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, a chamada “Convenção de Belém do Pará”; a Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial da Mulher “Beijing”, que constituem alguns dos mais relevantes instrumentos voltados à proteção dos direitos humanos da mulher na ordem jurídica internacional.
3.3.1 Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher.
Em 1975, foi realizada, no México, a I Conferência Mundial sobre a mulher que teve como resultado a elaboração da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contras as mulheres. Esta Convenção foi aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas através da Resolução 34/180, em 18 de dezembro de 1979. Foi assinada pelo Brasil, com reservas na parte relativa á família, em 31 de março de 1981, e ratificada com a manutenção das reservas, em 1º de fevereiro de 1984, entrando em vigor em 02 de março de 1984.
Em 22 de junho de 1994, tendo em vista o reconhecimento pela Constituição Federal Brasileira de 1988 da igualdade entre homens e mulheres na vida pública e privada, em particular na relação conjugal, o governo Brasileiro retirou as reservas, ratificando plenamente toda a Convenção. No Brasil, essa Convenção tem força de lei ordinária, conforme o disposto no artigo 5º, §2 da Constituição Federal vigente.
Esta Convenção foi elaborada com duplo fundamento, com a obrigação de promover a igualdade formal e material entre os gêneros e fomentar a não discriminação contra a mulher. Foi o primeiro instrumento internacional de direitos humanos, especificamente voltado para a proteção das mulheres. Dentre seus previsões, a convenção propõe a erradicação de todas as formas de discriminação contra as mulheres, com a finalidade de garantir o pleno exercício de seus direitos civis e políticos, como também seus direitos sociais, econômicos e culturais.
Por esse instrumento legal, a Assembléia Geral das Nações Unidas reconheceu que a discriminação contra a mulher viola os princípios da igualdade de direitos e do respeito à dignidade humana, constituindo-se obstáculo ao aumento do bem estar da sociedade e da família, além de dificultar o desenvolvimento das potencialidades da mulher.
A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, ocorrida em 1993, proclamou que os direitos da mulher e da menina são parte inalienável, integrante e indivisível dos direitos humanos universais.
Em 1994, a Organização dos Estados Americanos – OEA ampliou a proteção aos direitos humanos das mulheres com a edição da Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, “Convenção de Belém do Pará”.
3.3.2 Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, “Convenção de Belém do Pará”.
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher foi outro grande avanço na proteção internacional dos direitos humanos das mulheres, aprovada pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos – OEA, em 6 de junho de 1995 .
Essa importante Convenção ratificou e ampliou a Declaração e o Programa de Ação de Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993, e representa o esforço do movimento feminista internacional para dar visibilidade à existência da violência contra a mulher e exigir seu repúdio pelos Estados Membros da OEA .
A partir da Convenção de Belém do Pará surgem valiosas estratégias para a proteção internacional dos direitos humanos das mulheres, merecendo destaque o mecanismo das petições à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Esta Convenção é o primeiro tratado internacional de proteção dos direitos humanos a reconhecer, de forma enfática, a violência contra a mulher como um fenômeno generalizado, que alcança, sem distinção de raça, classe, religião, idade ou qualquer outra condição, um elevado número de mulheres em todo o mundo.
A referida Convenção declara que a violência contra a mulher constitui grave violação aos direitos humanos fundamentais e ofensa à dignidade humana, sendo manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens, limitando total ou parcialmente à mulher o reconhecimento, gozo e exercício de direitos e liberdades.
Vale lembrar que a Comissão Interamericana não é órgão judicial. Suas decisões não apresentam natureza jurídica normativa. A Corte Interamericana de Direitos Humanos é que constitui o órgão jurisdicional no plano da OEA, tendo suas decisões força normativa obrigatória e vinculante.
3.3.3 Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento “Cairo” e Declaração e Plataforma de Ação IV Conferência Mundial sobre a Mulher – “Beijing”.
A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento convocada sob os auspícios das Nações Unidas foi realizada em Cairo, Egito, de 05 a 13 de setembro de 1994. Reuniu representantes de mais de 180 governos e 1.254 organizações não –governamentais.
Esta conferência afirmou a existência de quatro plataformas para qualquer programa de população e desenvolvimento: a igualdade entre os sexos, empoderamento da mulher, proteção dos direitos sexuais e reprodutivos e eliminação de toda violência contra a mulher. O seu programa de ação declarou que o empoderamento da mulher e o investimento na melhoria da sua qualidade de vida são fins importantes e essenciais para que o desenvolvimento sustentável obtenha o êxito desejado.
A IV Conferência Mundial da Mulher, realizada pelas Nações Unidas, em “Beijing”, na China, em 1995, aprovou uma declaração e uma Plataforma de Ação com a finalidade de fazer avançar os objetivos e igualdade, desenvolvimento e paz para todas as mulheres. A Declaração e Plataforma de Ação de Beijing é acima de tudo, relativa à questão da violência doméstica, prevendo que são necessárias, além das medidas punitivas, ações que estejam voltadas para a prevenção, e , ainda medidas de apoio que permitam, por um lado, à vítima e à sua família ter assistência social, psicológica e jurídica necessárias à recomposição após a violência sofrida e, por outro, que proporcionem a possibilidade de reabilitação dos agressores.
3. 4 A Constituição Federal de 1988 e os Direitos Fundamentais.
A Constituição Federal de 1988 foi paradigmática ao declarar a dignidade humana como valor supremo da ordem jurídica, declarando-a em seu artigo 1º, III, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil a qual se constitui em Estado Democrático de Direito. O Constituinte não preocupou-se apenas com a positivação deste “valor forte” do pensamento oriental, mas buscou acima de tudo estruturar a dignidade humana de forma a lhe atribuir plena normatividade, projetando-a por todo o sistema político, jurídico e social instituído.
No tocante à posição do Brasil em relação ao sistema internacional de proteção aos direitos humanos, pode-se perceber que somente a partir do processo de democratização do país é que o Estado Brasileiro passou a ratificar relevantes tratados internacionais de direitos humanos. O primeiro passo no processo de incorporação de tratados internacionais de direitos humanos pelo Direito Brasileiro foi à ratificação, em 1984, da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher. A partir dessa ratificação, inúmeros outros importantes instrumentos internacionais de proteção aos direitos fundamentais foram também incorporados pelo Direito Brasileiro, sob a égide da Constituição Federal de 1988.
Como no Brasil as concepções de Estado Democrático de Direito, governo do povo e limitação do poder político estão indissoluvelmente ligadas, ao escolher seus representantes o povo delega poderes para agirem como mandatários e decidirem os destinos do país. Porém, o poder delegado pelo povo não é absoluto. Encontra limitações na Constituição Federal, principalmente no que tange a direitos e garantias individuais e coletivos do cidadão contra atos dos demais cidadãos e do próprio Estado.
Como marco fundamental do processo de institucionalização dos direitos humanos no Brasil, a Carta Magna de 1988, logo em seu primeiro artigo, erigiu a dignidade da pessoa humana a princípio fundamental, artigo 1º, inciso III, instituindo, com este princípio, um novo valor que confere suporte axiológico a todo o sistema jurídico e que deve ser sempre levado em conta quando se trata de interpretar qualquer das normas constantes do ordenamento nacional.
Os instrumentos Internacionais de direitos humanos, ou seja, as declarações, os pactos e as convenções, constituem um conjunto de recursos para a proteção dos direitos humanos. Eles são o marco referencial normativo e os acordos construídos em cada momento histórico pela comunidade nas nações, sob a coordenação das Nações Unidas (ONU), em nível global, e da Organização dos Estados Interamericanos (OEA), em nível regional .
IV A LEI “MARIA DA PENHA” – Nº 11.340/06
4.1-Origem e denominação da Lei Maria da Penha
A origem e denominação de “Lei Maria da Penha”, deu-se por uma mulher biofarmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, uma das milhares de vítimas de violência doméstica no país, sofreu, durante 6 (seis) anos, agressões de seu marido. Este, em maio de 1993, atentou contra sua vida com disparos de arma de fogo enquanto dormia. Ela ficou hospitalizada algumas semanas e retornou para seu lar com paraplegia nos seus membros inferiores.
O marido ainda não satisfeito com o resultado da violência contra a vida da mulher, prosseguiu no seu mister. Enquanto ela tomava banho tentou eletrocutá-la, mas Maria da Penha sobreviveu. Ele ficou impune por longos 19 (dezenove) anos, quando, finalmente, foi preso e condenado. Contudo, ficou preso por apenas 3 (três) anos.
Diante da morosidade da Justiça e da luta de Maria Penha, por quase 20 (vinte) anos, para ver o ex-marido condenado, o seu caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (caso n.º12.051/OEA). A República Federativa do Brasil foi responsabilizada por negligência e omissão em relação à violência doméstica.
Houve recomendação (relatório n.º 54/2001) para que o país realizasse profunda reforma legislativa com o fim de combater, efetivamente, a violência doméstica praticada contra a mulher.
O País atendeu à recomendação e deu início ao processo legislativo, com o fim de implementar medidas para contribuir na prevenção e combate à violência doméstica contra as mulheres.
A lei fundou-se em normas e diretrizes consagradas na Constituição Federal, no artigo 226, § 8º, na Convenção da Organização das Nações Unidas sobre a eliminação de todas as formas de violência contra a mulher e na Convenção Interamericana para Punir e Erradicar a Violência contra a mulher. Registre-se o admirável fundamento político-jurídico da lei.
Em cerimônia realizada no Palácio do Planalto, o Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, em 07 de agosto de 2006, com a presença de várias autoridades e de Maria da Penha Maia Fernandes, promulgou a Lei 11.340/2006. Em justíssima homenagem à luta pela justiça de Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou marcada para sempre física e psicologicamente pela violência sofrida, mas teve força e coragem para lutar contra a violência doméstica, a lei foi denominada ‘Maria da Penha’, entrando em vigor no dia 22 de setembro de 2006.
4.2-Objetivos da Lei “Maria da Penha”.
A Lei nº 11.340/06, apesar de não ser perfeita, assim como outras leis existentes, apresenta uma estrutura adequada e específica para atender a complexidade e a demanda do chamado fenômeno da violência doméstica ao prever mecanismos de prevenção, assistência às vítimas, políticas públicas e punição mais rigorosa para os agressores. Pode-se dizer que é uma lei que tem mais o cunho educacional e de promoção de políticas públicas de assistência às vítimas do que a intenção de punir mais severamente os agressores dos delitos domésticos, pois prevê em vários dispositivos medidas de proteção à mulher em situação de violência doméstica e familiar, possibilitando uma assistência mais eficiente e salvaguarda dos direitos humanos das vítimas.
Sobre o tema, Stela Valéria lembra que:
Não há dúvidas de que o texto aprovado constitui um avanço para a sociedade brasileira, representando um marco indelével na história da proteção legal conferida às mulheres. Entretanto, não deixa de conter alguns aspectos que podem gerar dúvidas na aplicação, e até mesmo, opções que revelam uma formulação legal afastada da melhor técnica e das mais recentes orientações criminológicas e de política criminal, daí a necessidade de analisá-la na melhor perspectiva para as vítimas, bem como discutir a melhor maneira de implementar todos os seus preceitos.
4.3 Constitucionalidade da Lei “Maria da Penha”.
Antes de abordar o ponto principal, ou seja, a constitucionalidade da Lei “Maria da Penha”, é necessário fazer a definição do que seria a chamada Constitucionalidade. No atual sistema constitucional tem-se o chamado “Controle de Constitucionalidade”, ou seja, sua função é verificar se alguma lei está em consonância ou não com a Constituição Federal. Este controle pode ser difuso, sendo caracterizado pela permissão a todo e qualquer Juiz ou Tribunal a realizar, no caso concreto, a análise sobre a compatibilidade do ordenamento jurídico com a Constituição da República Federativa do Brasil. Nos dizeres de José Afonso da Silva:
O controle constitucional difuso é reconhecido quando há o exercício a todos os componentes do poder judiciário .
Sendo assim, há uma grande discussão a respeito da constitucionalidade da Lei “Maria da Penha”, pois com dois anos de vigência, a referida lei ainda tem sido destaque de muitas discussões pelo motivo de apenas focar a mulher como vítima da violência doméstica, o que estaria criando um privilégio e estabelecendo uma desigualdade injustificada. O princípio da igualdade é consagrado enfática e repetidamente na Constituição Federal. Logo no preâmbulo está o compromisso de assegurar a igualdade e a justiça, sendo que a igualdade é o primeiro dos direitos e garantias fundamentais, conforme dispõe o artigo 5º. Porém, alguns defensores da inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha, afirmam que esta estaria ferindo não só o princípio da igualdade, como também, o princípio da isonomia entre os sexos, estabelecido no artigo 5º, inciso I da Constituição da República Federativa do Brasil. Segundo Stela Valéria:
A Lei “Maria da Penha” atribui à mulher tratamento diferenciado, promovendo sua proteção de forma especial em cumprimento às diretrizes constitucionais e aos tratados ratificados pelo Brasil, tendo em vista que, a mulher é a grande vítima da violência doméstica, sendo as estatísticas com relação ao sexo masculino tão pequenas que não chegam a ser computadas .
A igualdade não oculta as diferenças. A Constituição é bem clara no que diz respeito aos termos de proteção ao trabalho, no artigo 7º, XX em que há um tratamento diverso entre homem e mulher. Vale ressaltar que a diferença previdenciária é outro ponto importante, pois assegura no § 7º, do artigo 201 da Constituição Federal, que será de trinta e cinco anos a contribuição, se homem, e de trinta anos, de contribuição, se mulher. Por igual, as normas penais de erradicação da violência previstas na Lei que têm como sujeito passivo à mulher e como sujeito ativo o homem, não há que se falar em ofensa ao princípio da igualdade.
Porém, mesmo assim, diante de tantas controvérsias sobre o tema (constitucionalidade e inconstitucionalidade da lei), cabe lembrar que foi proferida uma decisão pela 2ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, que, em um retrocesso histórico, declarou inconstitucional a Lei Maria da Penha, no dia 27 de setembro de 2007. O argumento central é o de que a lei desrespeita os objetivos da República Federativa do Brasil, ferindo o princípio da igualdade, e violando o “direito fundamental à igualdade entre homens e mulheres, ou seja, há uma incompatibilidade, visto que a lei está em vigor, porém nem todos concordam com ela. Há que salientar que com o advento da Lei Maria da Penha, vieram algumas inovações, assim como, vantagens trazidas e introduzidas conforme artigo de Flávia Piosevan:
Houve mudança de paradigma no enfrentamento da violência contra a mulher, incorporação da perspectiva de gênero para tratar de desigualdade e da violência contra a mulher, incorporação da ótica preventiva, integrada e multidisciplinar, fortalecimento da ótica repressiva, harmonização com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, consolidação de um conceito ampliado de família e visibilidade ao direito á livre orientação sexual e ainda, estímulo à criação de bancos de dados e estatísticas.
Pode-se perceber, também que foi um marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no país, consagrando dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, “promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, conforme dispõe o artigo 1º, IV. Prevê também, no universo de direitos e garantias fundamentais que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.
Estudos e pesquisas revelam a existência de uma desigualdade estrutural de poder entre homens e mulheres e grande vulnerabilidade social das últimas, muito no que se refere à esfera da vida privada de suas vidas.
Conclui-se que a Lei “Maria da Penha” não seria inconstitucional sendo a própria Constituição atentada quando ao dever do Estado de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares, conforme o artigo 226, § 8º, e o mecanismo, no caso, criado para coibir a violência doméstica e familiar foi a Lei 11.340/06, que além de gerar mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher harmonizou-se com a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a Violência Contra a Mulher.
O Brasil era o único País a não ter uma lei própria com respaldo nos casos de Violência Contra a Mulher, e com a referida Lei em vigor, tem-se atualmente um respaldo jurídico para as vítimas dos mais variados tipos de violência contra a mulher.
4.4 Competência para processar e julgar a violência doméstica e familiar.
Em face da definição de violência doméstica, compreendendo que pode ser ação ou omissão física, psicológica, sexual, patrimonial, etc, as normas de competência, definidas na Lei “Maria da Penha”, podem ser encontradas nos artigos, 14, 15 e 33 da referida lei, que assim dispõem o art. 14. “Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher”.
Art. 15. É competente, por opção da ofendida, para os processos cíveis regidos por esta Lei, o Juizado:
I – do seu domicílio ou de sua residência.
II – do lugar do fato em que se baseou a demanda.
III – do domicílio do agressor.
Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão a competência cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente.
Parágrafo único. Será garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para o processo e julgamento das causas referidas no caput.
A lei, no artigo 14, diz que os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, que poderão ser criados pela União e Estados, além de possuírem competência tanto criminal como cível, serão competentes para processar e julgar os casos de violência contra a mulher.
O legislador facultou não determinando, assim, a criação desses juizados, provavelmente, para não prejudicar a autonomia das unidades federativas, que possuem competência legislativa em matéria de organização judiciária.
As varas criminais acumularam a competência cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, até que os juizados sejam criados, somado à determinação de que as causas terão julgamento preferencial.
A centralização dos temas que envolvam a violência doméstica contra a mulher em um juizado especializado, busca dar solução aos problemas enfrentados, que, em regra, tem sede noutras esferas, não só penais. Em conjunto com os demais organismos da sociedade, poderão fazer um trabalho eficaz de prevenção na prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Para definição da competência não importa o local do fato. Não é ele que define a competência, mas a constatação da violência contra a mulher e seu vínculo afetivo com o agente do fato.
Verifica-se, no artigo 15 da Lei 11.340/2006, que o legislador adotou o critério de determinação da competência que privilegie a vítima. Não obstante, apresente três critérios para fixação da competência, o texto da norma é claro no sentido de que a opção é da ofendida. Sobre o Tema Décio Luiz leciona que:
A mulher vítima pode optar, nos casos de processos cíveis regidos pela Lei“Maria da Penha”, por utilizar o Juizado do seu domicílio (onde tenha fixado sua residência com ânimo definitivo) ou de sua residência; do lugar do fato em que se baseou a demanda ou do domicílio do agressor .
Em regra, os crimes cometidos com violência doméstica e familiar são de competência da Justiça Estadual que serão processados e julgados pelos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher ou pelas Varas Criminais.
Enquanto os juizados não forem criados e estruturados, as varas criminais acumularão competência cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. É o que diz o artigo 33 da Lei n.º 11.340/2006.
É discutível a constitucionalidade deste artigo, porque o legislador, ao dispor sobre a competência de juízo, acabou por invadir a competência legislativa dos Estados em matéria de organização judiciária, conforme se pode verificar do teor do artigo 125, § 1º da Constituição Federal.
4.5 Medidas Cautelares Penais.
As medidas cautelares de natureza penais, previstas no artigo 22, I, II e III da Lei Maria da Penha, têm por finalidade prevenir e garantir, principalmente, a integridade física, psicológica e patrimonial da vítima e de seus familiares, para que a mulher possa agir livremente, viver sem violência, e ter preservada sua saúde física e mental, bem como criar condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados no artigo 3º, caput da Lei 11.340/2006.
O descumprimento dessas medidas pode acarretar um risco concreto para a vítima, razão pela qual a lei autoriza, no artigo 10 e seu parágrafo único, que a autoridade policial que tiver apurando os fatos, tome as providências cabíveis e necessárias para afastar o risco decorrente do descumprimento da medida de proteção determinada.
4.5.1 Suspensão da posse ou restrição do porte de armas
A suspensão da posse ou restrição do porte de arma visa impedir que o agressor se utilize da arma de fogo legal para ameaçar ou ceifar a vida da (ex) esposa ou (ex) companheira ou algum familiar, além de coibir o efeito intimidatório da simples existência da arma.
Fato é, que o suposto agressor pode conseguir uma arma ilegal, mas a medida por si só é útil e necessária, pois assim, dificulta ou restringe o acesso à arma de fogo, sujeitando o agente, inclusive, aos rigores da Lei 10.826/2003 .
Configurando o suposto agressor como indiciado pela prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, o juiz poderá de imediato aplicar tal medida cautelar, comunicando o órgão competente, nos termos da Lei 10.826/2003. A autoridade policial pode representar e o Ministério Público pode requerer a aplicação da medida.
A eficácia dessa medida depende da aplicação conjunta das medidas de afastamento do lar conjugal e de proibição de determinadas condutas.
4.5.2 Afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida.
A medida cautelar de afastamento do agressor do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida, visa impedir ou dificultar que as agressões sejam perpetradas ou reiteradas no lar conjugal, bem como afastar as pressões e ameaças contra a vítima e seus dependentes ou familiares.
Manter o suposto agressor sob o mesmo teto que a vítima, é uma forma de submeter à mulher a uma constante pressão psicológica e até desconforto moral, porque ela corre o risco de ser agredida a qualquer momento, principalmente por ter chegado ao conhecimento do poder público a agressão praticada contra ela. O afastamento do lar possibilita que a vítima e os demais familiares se sintam, pelo menos, aparentemente seguros.
A saúde física e psicológica é preservada, porque inexistirá o risco iminente de agressão, já que o agressor não estará dentro de casa. O patrimônio da vítima também é preservado, já que os objetos do lar não poderão ser destruídos.
Essa medida cautelar de afastamento do lar já existe no nosso ordenamento jurídico, no artigo 69, parágrafo único da Lei 9.099/1995 , ela também se assemelha à medida prevista no artigo 888, VI do Código de Processo Civil, embora não seja específica para hipótese de violência doméstica e familiar praticada contra a mulher. O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, no artigo 130, também prevê como medida cautelar a ser aplicada pelo juiz, o afastamento do agressor da moradia comum, na hipótese de maus- tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsáveis.
4.5.3 Proibição de determinadas condutas.
A Lei 11.340/2006, no artigo 22, III, traz as condutas que podem ser proibidas para o suposto agressor, são elas:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
A medida visa impedir que o agressor cause constrangimento à vítima ou testemunhas, por qualquer meio de comunicação, como carta, telefonema, e-mails.
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida.
A finalidade dessa medida é evitar o contato do agressor com a vítima, preservando a integridade física e psicológica da vítima. A medida pode impedir, por exemplo, que o agressor se dirija ao local de trabalho da vítima ou a algum lugar que ela freqüente regularmente, como um culto religioso ou faculdade.
Lei 9.099/1995, Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se a requisições dos exames periciais necessários.
Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima.
De acordo com o Código de Processo Civil, Artigo. 888: O juiz poderá ordenar ou autorizar, na pendência de ação principal ou antes de sua propositura:
VI- o afastamento temporário de um dos cônjuges da moradia do casal.
O juiz deve agir com prudência e observar a razoabilidade e proporcionalidade ao aplicar a medida, porque ela causa uma proibição à liberdade de locomoção do suposto agressor, devendo ser aplicada quando for estritamente necessária para assegurar a segurança da vítima.
As medidas cautelares penais, além de aplicadas de ofício pelo juiz, somente podem ser requeridas pelo titular da ação penal, ou seja, o Ministério Público, porque são medidas que só obrigam o agressor. A vítima, por sua vez, não tem legitimidade para requerer tais medidas cautelares, porque não pode promover a ação principal.
O artigo 10 da Lei 11.340/206 autoriza a autoridade policial a representar pela adoção de determinada medida cautelar.
Essas medidas cautelares somente podem ser aplicadas na presença dos requisitos das cautelares em geral, ou seja, a fumaça do bom direito e o perigo na demora, bem como, devem durar somente o tempo necessário para garantir a proteção das vítimas e seus familiares.
Por fim, em uma reportagem com a Delegada Adriana Pereira Mendes Sálvio , titular da Delegacia de Atenção à Mulher (DEAM) do Centro da Cidade, esta fala sobre o impacto da Lei Maria da Penha sobre a violência doméstica, afirmando que com o advento da Lei, houve uma pequena redução do número de registros, porém não é possível afirmar que diminui a violência doméstica contra a mulher.
Apesar de haver mais de um ano da lei, ainda é cedo para tirar uma conclusão definitiva. Pode -se apontar algumas possibilidades. Uma delas é que, como a lei possibilita a prisão do agressor, e considerando que ele é, muitas vezes o próprio marido, a pessoa com quem a mulher tem uma relação afetiva, filhos, isto pode inibir aquela mulher de fazer o registro, porque, apesar dela não querer que aquela situação continue, ao mesmo tempo pode não querer que o sujeito vá preso. Outra possibilidade é que, por ser uma lei mais dura, está inibindo o homem de cometer violência, sendo uma forma de prevenção e proteção às mulheres.
CONCLUSÃO
O objetivo desta monografia, foi o de conferir a necessidade de uma especial proteção às vítimas de violência doméstica, ou seja, a mulher. O primeiro passo foi analisar o tema da violência, ou seja, verificar as diversas formas e tipos de violência existentes, assim como o gênero, sua origem, características, formas de manifestação, os sujeitos ativo e passivo, o perfil do agressor e o perfil das vítimas, os direitos fundamentais das mulheres e etc.
Um aspecto importante que foi abordado, é que a violência de gênero, por ocorrer em regra dentro do ambiente doméstico e familiar, é o primeiro tipo de violência que o ser humano tem contado de maneira direta, situação que, certamente, influenciará nas formas de condutas externas de seus agentes, seja agressor ou vítima.
Embora não sendo a raiz de todas as formas de violência, a intervenção estatal nas relações domésticas e familiares de violência é essencial, inclusive para a superação de boa parte das ocorrências exteriores no ambiente familiar e doméstico.
A violência doméstica é a origem da violência que assusta a todos. Quem convive com a violência, muitas vezes, até mesmo antes de nascer e durante a infância, acha tudo muito natural, o uso da força física, visto que para essa pessoa a violência é normal. Com a evidente discriminação e violência contra as mulheres o Estado interveio através da Lei 11.340/06 – Lei “Maria da Penha” para coibir os diversos tipos de violência, fazendo então, com que as mulheres se sentissem mais seguras, resgatando a cidadania e a dignidade dessas cidadãs que, na maioria das vezes, sofrem caladas.
O juiz do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, tem, agora, à sua disposição, instrumentos processuais suficientes para proporcionar integral proteção às vítimas dessa violência de gênero. Era imprescindível a implementação de medidas com o fim de resgatar, em essência, a cidadania e a dignidade da mulher; marginalizada pela sociedade machista e patriarcal.
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