Há alguns anos, as pessoas com transtornos mentais não eram consideradas cidadãos de direito e, por isso, eram excluídos da sociedade e submetidos a internação hospitalar.
Mas a Constituição Federal de 1988 e o movimento da Reforma Sanitária abriram novos horizontes para essas pessoas. A criação de um sistema universal de saúde e o reconhecimento do direito à saúde foi fundamental para que um novo olhar sobre o transtorno mental ganhasse espaço e respeito. Assim, o movimento da Reforma Psiquiátrica tanto afirmou o direito à saúde, quanto questionou a segregação, o controle e a exclusão em que viviam inúmeras pessoas com transtornos mentais, erroneamente chamadas de “loucas”.
A Lei 10.216/2001 reconhece os direitos das pessoas com transtornos mentais e modifica o modelo assistencial em saúde mental. Essa mudança garantiu que as pessoas – com ou sem transtornos mentais - pudessem usufruir dos direitos da cidadania. O médico e coordenador de saúde mental, álcool e outras drogas da Secretaria de Saúde de São Paulo, Roberto Tykanori, defende que a Reforma trouxe uma mudança radical. “Antes as pessoas viviam em situação de extrema vulnerabilidade e internados. Hoje o atendimento é baseado no respeito aos pacientes. Além disso, o atendimento alcança todo o país, não só algumas regiões privilegiadas”, explica.
A confirmação desses direitos levou também ao fortalecimento de cuidados que pudessem promover a reabilitação e integração social. Ao longo dos últimos anos, no âmbito do SUS, vem sendo implantada e consolidada a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), articulando uma série de serviços que buscam fortalecer o novo modelo de cuidado em liberdade, próximo ao território de vida das pessoas, com a participação da família e da sociedade, garantindo direitos e afirmando a cidadania.
O Programa de Volta para Casa (PVC), instituído pela Lei 10.708/2003, também teve papel fundamental na história de conquista de direitos. Ela garante cidadania a pessoas que passaram muitos anos excluídas do convívio social, em função de longas internações em hospitais psiquiátricos. O PVC garante auxílio-reabilitação psicossocial a pessoas que tenham vivido longas internações psiquiátricas, contando em 2016 com mais de quatro mil beneficiários, que hoje vivem em comunidade e não mais entre muros.
Tykanori explica que existem inúmeras situações onde pacientes saíram de internações e se adaptaram rapidamente ao convívio em sociedade. “Houve uma senhora de 90 anos que ficou 60 anos internada e ela nunca falava. Achavam que ela não conseguia. Uma semana depois de sair e ir pra casa, voltou a falar. No geral, as situações de internação são bem tristes e elas ainda existem. Mas também existe um trabalho progressivo para acabar com esse tipo de atendimento”, conta.
O Manual de Direitos e Deveres dos Usuários e Familiares em Saúde Mental e Drogas está disponível para quem procura uma apresentação detalhada sobre os direitos e deveres dos usuários e familiares em saúde mental e drogas, envolvendo direitos humanos, normas jurídicas, questões de reabilitação psicosocial, economia solidárias, entre outras. A publicação é oferecida desde 2014 e foi elaborada pela Escola do Serviço Social da UFRJ e o Ministério da Saúde.
Outro marco fundamental para garantir os direitos das pessoas com transtornos e sofrimentos mentais foi a Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência (Lei Federal nº 13.146/2015), em vigor a partir de janeiro de 2016, que rompe com a condição de incapacidade absoluta antes atribuída às pessoas com transtornos mentais. O regime de curatela e a restrição de direitos existenciais e de personalidade, como os direitos ao voto, ao casamento, à educação, ao trabalho, à adoção, à sexualidade e ao próprio corpo, passam a ser exceção.
Além dessas conquistas, a Lei Brasileira de Inclusão traz outros instrumentos importantes para a reabilitação psicossocial, para a decisão apoiada e também para uma mudança nos processos que avaliam a deficiência, considerando perspectivas interdisciplinares e multiprofissionais. O conceito de deficiência também ganhou um novo entendimento, passando a considerar a pessoa com deficiência “aquela que tem impedimento de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.
O reconhecimento formal desses direitos e os conceitos e práticas que transformam, apresentam também novos desafios, inclusive de mudanças culturais na forma como a loucura e o sofrimento mental são vistos. Para que sejam direitos de fato, todos, gestores, equipes de saúde, usuários, familiares, redes de assistência, judiciário e sociedade, precisam conhecê-los, discuti-los e exerce-los. O cuidado em saúde mental caminha lado a lado com a cidadania.
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