segunda-feira, 25 de julho de 2016

Fosfoetanolamina: a milagrosa pílula do câncer.

Resumo: Em abril de 2016, em meio a um turbilhão de eventos político-econômicos e afundados em uma onda de surtos de dengue, zika, chikungunya e H1N1 o Governo Federal, em tramitação recorde discute, aprova nas duas casas legislativas e sanciona uma lei que permite o uso da substância fostoetanolamina, droga milagrosa que mereceu da mídia a alcunha de “pílula do câncer”. Dirigida a um público extremamente fragilizado pela perversidade de uma doença cuja possibilidade de cura é rarefeita, abre-se um mercado promissor para comércio de um fármaco que carece de estudos conclusivos de eficácia e mapeamento seguro de seus efeitos colaterais e ignora a função e competência da agência reguladora do setor, a ANVISA.
Palavras-chave: Pílula do Câncer; Fosfoetanolamina; Lei 13.269/2016

INTRODUÇÃO:

O presente trabalho discute as incertezas que pairam acerca dos efeitos realmente curativos da fosfoetanolamina na cura das neoplasias malignas,  a ponto de ter merecido da mídia a alcunha de “pílula do câncer”.
Pretende-se abordar a ausência de estudos conclusivos acerca da eficácia da substância, que diante do apelo dramático do paciente que busca a cura de uma patologia que se sabe de cura difícil, e da enganosa propaganda que se constrói sobre seus efeitos curativos, acaba por expor o paciente aos efeitos desconhecidos da droga (benefícios e malefícios não mapeados) ou à insegurança dos médicos quanto ao ponto de se prescrevê-la em grande escala.
No mesmo diapasão discute-se a responsabilidade das Casas Legislativas Federais em fazer sobrepor a decisão política aos conhecimentos técnicos científicos da ANVISA e das entidades médicas e oncológicas que desacreditam (ou alimentam incerteza) quanto ao poder curativo da substância.
A mídia, na ânsia de informar, acaba por construir um universo de esperanças sobre uma pesquisa científica inconclusa e fomenta um mercado gigantesco de medidas judiciais, que por sua vez acaba por oferecer à pesquisa dezenas de milhares de cobaias humanas que de bom grado se submeterão ao uso do fármaco diante da promessa (ou esperança) da cura.
Por outro lado, a lei, recentemente aprovada sem o aprofundamento da discussão, contribui para abertura de um mercado extremamente promissor de royalties sobre a substância patenteada, embora desconheçam seus reais efeitos clínicos e curativos.

 ENQUANTO HÁ VIDA HÁ ESPERANÇA

Para os profissionais que trabalham com pacientes portadores de doenças terminais, são facilmente identificáveis e conhecidos os cinco estágios da doença, descritos pela psiquiatra suíça Elizabeth Kübler-Ross (1969).
Segundo a pesquisadora, em seus estudos de tanatologia apresentados na obra “Sobre a Morte e o Morrer” (1969), a descoberta de uma doença incurável leva o paciente a cinco estágios emocionais: a negação; a raiva; a negociação; a depressão e, por fim, a aceitação.
Tais estágios do epílogo da vida foram discutidos de maneira crítica pelo cinema na obra Antes de Partir (The Bucket List) do cineasta Rob Reiner (2007), onde os personagens centrais da trama Carter Chambers (Morgan Freeman) e Edward Cole (Jack Nicholson), compartilham os períodos finais de tratamento de doenças terminais.
 Apesar de sua seriedade, o tema é abordado de maneira bem humorada, com dois personagens em conflito: um pobre, negro e sábio (Freeman) e um rico, branco e fútil (Nicholson) que convivem com a certeza da morte próxima e discutem valores da vida em sua fase final.  Cientes que as incertezas do final da vida afeta a todos indistintamente, ambos elaboram uma “lista de desejos” e resolvem realizá-la antes da partida.
Longe das ribaltas da arte, porém, a angústia que se abate sobre portadores de doenças denominadas terminais ou incuráveis vai além do Modelo de Küber-Ross, levando o paciente e sua família a enveredar por caminhos da esperança (ou do desespero) em busca da cura ou alívio ou mecanismo de enganar o espírito e antecipar o estágio de aceitação da morte iminente.
Neste estágio, do dogmatismo ingênuo ou da última esperança, não descrito pela Doutora Kübler-Ross, o paciente acredita em qualquer coisa e tomará qualquer atitude para alivio dos sofrimentos e busca da cura que se sabe incerta. O prolongamento da vida ou a eliminação dos incômodos da doença expõe ao enfermo e à sua família a uma situação de fragilidade emocional, susceptível a qualquer promessa de alívio. Diante da certeza da morte vale à pena investir em qualquer fagulha de esperança, uma vez que nada se tem a perder.

UM MERCADO PROMISSOR

Ao contrário do paciente, no entanto, que nada tem a perder, laboratórios que fabricam medicamentos muito tem a ganhar. E aí que reside a discussão ética que se propõe neste ensaio. 
Alimentando a esperança de dezena de milhares e pacientes cancerígenos o Brasil, por meio da Lei Federal 13.269/2016, liberou o consumo da substância fosfoetanolamina, supostamente uma droga sintética capaz de curar o câncer.
Concebida no calor de uma discussão ética-jurídica-científica ainda não conclusa, a aprovação da norma resulta em um típico casuísmo emocional, no qual sucumbiu o Congresso Nacional, ao arrepio dos instrumentos que orientam a liberação do comércio de drogas e medicamentos e, até mesmo, desautorizando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), cuja  competência legal encontra-se expressa no artigo 8º da lei 9.782/1999:
Art. 8º  Incumbe à Agência, respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública.
§ 1º  Consideram-se bens e produtos submetidos ao controle e fiscalização sanitária pela Agência:
I - medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e tecnologias;
Não é, no entanto, a primeira vez que o Congresso Nacional enfrenta a ANVISA e contraria suas decisões técnicas. Em setembro de 2014, por meio do Decreto Legislativo 273 foi liberada a fabricação, a prescrição e venda do inibidor de apetite sibutramina, considerado pela ANVISA uma substância nociva à saúde desde 2011 (Resolução RDC 52 da ANVISA).

O MILAGROSO CASO DA FOSFOETANOLAMINA  

A fosfoetanolamina é um composto orgânico, presente nos organismos de mamíferos e que participam da composição estrutural das células. Os primeiros estudos dessa substância foram iniciados em 1936 pelo cientista  Edgar Laurence Outhouse, do Departamento de Pesquisas Médicas do Instituto Banting da Universidade de Toronto, Canadá.
A versão sintética da substância começou a ser estudada nos anos 1970. No entanto o seu uso como droga de enfrentamento ao câncer vem sendo estudado no Brasil pelos Professores Gilberto Orivaldo Chierice, Salvador Claro Neto, Antônio José Reimer, Sandra Vasconcellos Al-Asfour, Renato Meneguelo e Marcos Vinicius de Almeida, que estudaram, sintetizaram, registraram e testaram um novo composto de fosfoetanolamina capaz de marcar células tumorais, permitindo ao organismo humano detectar e combater estes tumores.
A partir de resultados preliminares considerados animadores em alguns modelos experimentais em linhagens celulares de câncer e em animais, os pesquisadores decidiram “testar” a substância em seres humanos, quanto teve início o uso em alguns pacientes portadores de neoplasias na região da cidade de São Carlos-SP.
A fórmula dos cientistas brasileiros está protegida pela lei de patentes e, desde o final da década de 1980, por atuação do professor Orivaldo Chierice, vinha sendo fabricada e distribuída pelo Instituto de Química de São Carlos, unidade da USP a pacientes cancerosos, mesmo ante a ausência de laudos conclusivos sobre a eficácia do fármaco.
Diante da ausência de autorização de produção e distribuição do medicamento e da falta de laudos conclusivos quanto à sua eficácia no tratamento do câncer, a USP suspendeu a fabricação e a distribuição do produto em seus laboratórios.
A partir de então, cresceu exponencialmente o número de ações judiciais contra a USP e dezenas de liminares foram obtidas por pacientes portadores de neoplasias que obtiveram tutela judicial para continuar a consumir a substância ou a ela ter acesso. 
O assunto mereceu grande destaque no mundo jurídico quando, em  08 de outubro de 2015, o Ministro Edson Fachin, do STF, deferiu medida liminar que garantiu a uma paciente o acesso ao produto e obrigou o fornecimento da substância à USP–  São Carlos.
Na decisão o Ministro Edson Fachin, suspendeu decisão anterior e contrária do Tribunal de Justiça de São Paulo que negava a distribuição da pílula contra o câncer fornecida pela Universidade de São Paulo (Campus de São Carlos) e, no entendimento do preceito constitucional de que a vida, a saúde e a dignidade da pessoa humana são bens indisponíveis, obrigou a Universidade a produzir e distribuir a substância.
Na ação principal o TJSP havia entendido que a ausência de certificação do produto pela ANVISA não lhe garantia a eficácia desejada e poderia por em risco a saúde do paciente. Não obstante, no entendimento do ministro, proferido na Petição (PET) 5828, o tema relativo ao fornecimento de medicamentos sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) aguarda pronunciamento da Corte em processo com repercussão geral reconhecida – Recurso Extraordinário (RE) 657718 e diante do fundamento invocado pelo TJSP que referia-se apenas à ausência de registro na ANVISA da substância,  entendeu que não havia lesão à ordem pública e determinou o fornecimento do suposto medicamento.
Pesou na decisão do ministro o fato, mais emocional do que jurídico, de a paciente informar ser portadora de moléstia grave, em fase terminal, e ter-lhe sido indicada, por laudo médico o consumo da substância, ante a ineficácia de todos os procedimentos médicos recomendados. Medida extrema e derradeira, portanto, que não comportaria outras discussões científicas ou doutrinárias.
Diante da repercussão da distribuição de fosfoetanolamina para fins terapêuticos no tratamento do câncer pelo Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da Universidade de São Paulo (USP) e da grande cobertura midiática que mereceu o feito, a partir de então o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e o Ministério da Saúde, de forma articulada, vêm promovendo a realização de estudos para verificar a segurança e eficácia da substância, sem ter chegado, ainda, a uma conclusão definitiva sobre a sua eficácia em seres humanos (BRASIL, 2016).
Nos documentos da Associação Médica Brasileira há notícia de que a fosfoetanolamina sintética teria sido testada unicamente em camundongos, com reação positiva no combate do melanoma (câncer de pele) neste animal. Devido à expectativa gerada pela substância, apresentada como capaz de “tratar todos os tipos de câncer”, milhares de ações judiciais foram apresentadas até a decisão do STF suspendendo sua distribuição.
Em abril de 2016, atendendo a apelo da USP, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski, reviu a decisão exarada pelo ministro Edson Fachin e determinou que a distribuição da fosfoetanolamina pela Universidade deveria se dar somente enquanto remanescer o estoque do composto e promoveu o trancamento de todas as ações que objetivavam ter acesso ao produto.
Depois disso, o fornecimento foi suspenso tendo como justificativa a ausência de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), a falta de estudos publicados sobre os benefícios de sua utilização na cura do câncer, a falta de estudos que atestem sua segurança e o desvio de finalidade da instituição de ensino (BRASIL, 2016).

PACIENTES TERMINAIS E COBAIAS HUMANAS

O uso de medicamentos experimentais por pacientes cancerígenos não é novidade no biodireito brasileiro. É conhecido o caso da substância  rituximabe utilizado pela Presidente Dilma Rousseff para cura de um câncer no sistema linfático em 2009, apesar da comunidade cientifica divergir sobre sua eficácia.
Na esteira do procedimento adotado para cura da então ministra Dilma Rousseff vários médicos sentiram-se à vontade para prescrever o produto e a justiça se viu em condições de determinar o seu fornecimento àqueles que demandavam pelo tratamento.
Procedimento curativo experimental ou cobaias humanas? É uma indagação sem resposta.
A administração em seres humanos de substâncias cuja eficácia curativa ainda não comprovada se, de início, pode nos convencer acerca de um tratamento curativo extremo, diante da ausência de resultados de todos os outros procedimentos médicos recomendados, por outro lado outro pode ser, perfeitamente uma estratégia cruel de utilização de cobaias humanas para testes e estudos, ao arrepio das normas éticas de pesquisa envolvendo seres humanos.
Não é novidade que o comércio de drogas medicamentosas (ou não) constitui um segmento econômico que movimenta cifras incalculáveis. No mesmo viés é de amplo conhecimento que a solução para doenças incuráveis ou rarefeitas, e o câncer é uma delas, poderá resultar ao seu pesquisador não apenas status científico de alta linhagem (ou até indicação ao Prêmio Nobel), como também o registro de patentes altamente promissoras, cujo valor de mercado poderá enriquecer o denodado estudioso. E isso, à custa de experimentos que, à sombra da dor alheia, pode se comparar aos feitos dos médicos nazistas: o uso indiscriminado de cobaias humanas. 
A discussão sobre o uso de cobaias não humanas em pesquisa científica é tema recorrente.  Um episódio que movimentou a comunidade acadêmica aconteceu em outubro de 2012 quando um grupo de militantes dos direitos dos animais invadiu a sede do Instituto Royal, em São Roque, no estado de São Paulo.
Naquela empreitada fora denunciado o uso de cães da raça beagle que seriam cobaias para testes de medicamentos e cosméticos. A libertação dos animaizinhos vítimas da “perversidade humana” em nome da ciência foi comemorada pelas redes sociais e mereceu destaque nos principais revistas e jornais do país.
A questão da fosfoetanolamina, no entanto, assim como a dos cãezinhos beagle, envolve nosso lado emotivo.  O que vemos, na verdade, não são cobaias humanas submetidas a testes de produtos químicos, mas pessoas em fase terminal, cujas esperanças mínguam na medida em que a doença progride e que buscam nessa experiência científica a última fagulha de esperança.
Fogem à nossa compreensão imediata os efeitos colaterais da droga, a propaganda enganosa com a ilusão da cura que ainda não fora certificada ou, até mesmo, a potencialização de sofrimentos que poderão advir da administração da substância em conjunto com outras que fazem parte do tratamento do paciente.
Do mesmo modo escapam da nossa percepção os valores econômicos envolvidos em eventual pesquisa científica que usa indiscriminadamente seres humanos para desenvolvimento de remédios que, patenteados, poderão render aos seus pesquisadores cifras imensuráveis.
Sem duvida uma discussão mais ética que científica.

A PESQUISA EM SERES HUMANOS

O uso de seres humanos em pesquisa científica não é novidade  no estudo do biodireito, como não o é nas relações da bioética, a ponto de merecer formulação de normativo internacional que organize esta área de atuação.
A declaração de Helsinque, documento promulgado pela Associação Médica Mundial (AMM ou WAM em inglês) foi elaborada em 1964 e permanece sendo um dos principais documentos internacional de ética em pesquisa envolvendo seres humanos.
Periodicamente revista, atualizada de acordo com os avanços científicos, o desenvolvimento de postulados éticos e jurídicos, a última revisão da Declaração de Helsinque se deu em 2013, na 64ª. Assembleia Geral da WAM ocorrida em Fortaleza – Brasil,  e propõe me seu item 37 a seguinte recomendação:
37. No tratamento de um determinado paciente, onde intervenções comprovadas não existem ou outras intervenções conhecidas se mostraram inefetivas, o medido, depois de buscar conselho especializado, com consentimento informado do paciente ou de representante legalmente autorizado, pode usar uma intervenção não comprovada se em seu julgamento ela oferece a esperança de salvar a vida, restabelecer a saúde ou aliviar o sofrimento. Esta intervenção deve, em seguida, tornar-se objeto de pesquisa desenhada para avaliar sua segurança e eficácia, em todos os casos a nova informação deve ser registrada e, quando apropriado, tornada disponível publicamente.
Seria uma infantilidade acreditar que os avanços da ciência e da produção de fármacos pudessem se dar sem a pesquisa envolver, diretamente, seres humanos. Desde os estudos de Galeno e Paracelso a indústria de medicamentos se vale de experimentos em pessoas a fim de comprovar a sua eficácia. Isso pelo fato de que experimentos em animais (ratos, coelhos e primatas menores) nem sempre correspondem às reações do corpo humano.
Assim, a pesquisa médica envolvendo seres humanos, no que se reporta à produção de novas drogas e medicamentos, tem sido prática comum na evolução desta área da ciência.
Por óbvio muitas vidas foram perdidas em forma de contribuição para melhorar a qualidade de vida de outros, aprimorar medicamentos ou definir-lhes as proporções seguras de consumo.
As questões éticas, no entanto, que nos causam certo desconforto é quando se percebe a intenção científica de que determinadas substâncias possam ser usadas em seres humanos sem que se tenha dimensionado o alcance real de suas potencialidades curativas ou o paciente não tenha  recebido a informação correta de que faz parte de um processoexperimental, cujos efeitos não foram suficientemente esclarecidos e os resultados não podem ser dimensionados como milagrosos.
A ilusão da cura talvez seja o mais grave problema ético da Fosfoetanolamina.
Ainda restam evidentes em nosso meio os danos causados pelo uso da Talidomida, uma outra droga milagrosa difundida na segunda metade dos anos 1950, cujos efeitos colaterais não haviam sido totalmente mapeados e se mostraram os mais nefastos e que casou sérios danos diante da desinformação e da falta de controle no fornecimento do medicamento.
Torna-se claro que há necessidade evidente de se ter normas que disciplinem as pesquisas científicas e coíbam a prática abusiva de experimentações sem critérios ou a distribuição de medicamentos que se proponham, de maneira milagrosa, a curar determinadas enfermidades, sem alertar o paciente dos riscos potenciais, inclusive da ilusão da cura.
Torna-se ainda mais grave tal procedimento quando se tem por objeto da pesquisa um grupo extremamente fragilizado da população que, indiferente dos postulados éticos, avança sobre o desconhecido como última tábua de salvação, susceptíveis que são à propaganda enganosa.
Por certo, ao mesmo tempo em que a sociedade pode se tornar beneficiária dos resultados que advirem do experimento, torna-se temeroso e inseguro o uso em larga escala de um produto do qual ainda não se sabe a potencialidade nociva ou curativa.
Tornar o ser humano cobaia de experimentos científicos, ainda que esteja em fase final da vida ou situação irreversível de doença, causa certo desconforto no homem médio, que criou padrões de ética que interfere na clareza de discernir até onde se pode dispor da vida de outrem.

O CASUÍSMO DA LEI FEDERAL 13.269 DE 13 DE ABRIL DE 2016

Apresentado na Câmara Federal em 08 de março de 2016 o projeto de Lei 4.639/2016 fora subscrito por vinte e seis deputados, de doze estados brasileiros e dezesseis partidos com representação do Parlamento, de maneira a merecer, praticamente a aprovação homologatória da Casa Legislativa.
Em dois dias o projeto já se encontrava aprovado e remetido ao Senado Federal onde também tramitou em celeridade recorde, a ponto de vir a se tornar lei ordinária em pouco mais de um mês depois de sua apresentação em 13 de abril de 2016 (BRASIL, 2016). Como dizia um jargão televisivo, foi aprovado em um vapt-vupt.
Dito desta forma, tem-se, à primeira vista, a preocupação dos senhores parlamentares com a saúde do brasileiro pela atenção singular que deram ao tema, a ponto de aprovar a norma em pouco mais de um mês, ou pelo fato de já haver na Casa outras proposições legislativas de conteúdo semelhante, em especial o PL 3.454/2015 de autoria do Deputado Mineiro Wellington Prado (PT/MG) que tramitava desde outubro de 2015 (BRASIL, 2016) e com discussão já avançada.
Por outro lado, percebe-se que o momento histórico da aprovação e sanção do tema se dá exatamente no centro de uma discussão nevrálgica de uma crise política sem precedentes, em sendo a matéria uma resposta à uma sociedade ávida por notícias menos beligerantes. Soma-se a isso os fantasmas da saúde pública negligenciada, assoladas por ondas de zika-virus, chikungunya, dengue e gripe H1N1 para as quais as respostas governamentais ainda são tímidas.
Conjecturas e ilações à parte, temos que o assunto não fora debatido no Parlamento com a profundidade e transparência que requer, mormente pela complexidade que apresenta já que reúne em si não apenas o sim ou não da deliberação governamental, mas comporta discussão de natureza ética, jurídica e científica que não foram suficientemente resolvidas.
No dia seguinte à sanção da norma, a página oficial da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) na internet externava a preocupação do órgão acerca da fabricação e distribuição da substância, quase que como um alerta à população quanto à suposta irresponsabilidade governamental:
A Anvisa reitera sua profunda preocupação em relação à Lei nº 13.269, que libera a produção e comercialização da substância Fosfoetanolamina, mesmo sem esse produto ter realizado os estudos clínicos capazes de comprovar sua eficácia e segurança e de não ter sido registrado na Agência, como todos os medicamentos em uso no País precisam ser. Essa exceção, concedida pela Lei nº 13.269, abre perigoso precedente porque afronta o sistema regulatório em vigor, que foi estabelecido pelo próprio Congresso Nacional, e pode trazer riscos sanitários importantes para nossa população (ANVISA, 2016).
Do alto de sua competência específica em assuntos que se refere a fabricação, produção e distribuição de medicamentos, a ANVISA emite alerta de graves riscos à população, apresentando questões que deveriam ter sido respondidas nos debates parlamentares e que não estão suficiente claras à comunidade científica, médica e sobretudo ao usuário. No mesmo endereço eletrônico, em 14 de abril de 2016 a Agência questiona:
[...] quem assegurará ao consumidor que a substância que está adquirindo não é uma inescrupulosa falsificação? Quem garantirá que a quantidade da substância informada na embalagem é efetivamente a que existe no interior de cada cápsula? Como ter certeza que no interior de cada cápsula existe apenas a Fosfoetanolamina, e não outras substâncias que poderão ser ingeridas sem que o consumidor saiba de sua existência? Na embalagem haverá data de fabricação e de validade e as informações que permitem identificar o lote produzido, em caso de ocorrerem eventos adversos? Haverá bula e nela poderá ser indicado que o paciente não deverá realizar o tratamento convencional contra o câncer? Na bula ou na embalagem poderá ser anunciado que a substância cura todos os tipos de câncer, mesmo sem haver qualquer comprovação científica para essa alegação? Se um paciente de câncer tomar a Fosfoetanolamina e não tiver seu câncer curado, a quem ele poderá responsabilizar? 
Tais questionamentos, efetuados por quem tem a missão legal de regular o setor de produção e distribuição de medicamentos no país é dirigido às autoridades que, a nosso sentir, usurparam funções técnicas e num casuísmo perigoso atenderam a um clamor popular, sem o devido cuidado no estudo da matéria.
Como já observado neste estudo, o fato não é novidade na Casa Legislativa, desde que o Parlamento resolveu enfrentar a ANVISA e liberar os inibidores de apetite compostos de sibutramina, que a agência havia retirado de comercialização por razões técnicas.
A gravidade do tema é tão evidente que mal a lei fora publicada no Diário Oficial da União, a  Associação Médica Brasileira (AMB) ajuizou no Supremo Tribunal Federal Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5501), contra a Lei 13.269/2016,  motivada pelo fato de amplo desconhecimento acerca da eficácia e dos efeitos colaterais da substância em seres humanos.
Argumentou a entidade que a liberação do fármaco é incompatível com direitos constitucionais fundamentais como o direito à saúde (artigos 6° e 196 da CF), o direito à segurança e à vida (artigo 5°, caput), e o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1°, inciso III).
A Ação Direta de Inconstitucionalidade foi distribuída à relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello e ainda estava sem deliberação quando da elaboração desse estudo (BRASIL, 2016).

A LEI 13.269 E SEU ALCANCE PRÁTICO:

Após decisão do STF que determinou a suspensão da distribuição da substância em abril de 2016 a USP, enquanto unidade de ensino, fechou o seu Instituto de química no Campus de São Carlos, onde fabricava a fosfoetanolamina sintética. Notadamente após ter sido, aquela unidade de prática educacional, transformada em um centro produtor da substância, requisitada às mancheias por liminares judiciais perdera a função pedagógica.
O advento da Lei 13.269/2016, no entanto, abre espaço para a produção em série da substância, que se diga, patenteada em nome dos seus pesquisadores brasileiros, com oportunidade de comércio em larga escala, ao largo dos olhos da ANVISA.
A Lei 13.269/2016 tem apenas cinco artigos, a carecer de farta regulamentação até a sua eficácia legislativa plena. Não obstante a maior gravidade, a nosso sentir, resume-se ao disposto no artigo 4º, quando permite a fabricação e consumo da substância, independente de pronunciamento e controle da ANVISA.
Art. 1o Esta Lei autoriza o uso da substância fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna.
Art. 2º  Poderão fazer uso da fosfoetanolamina sintética, por livre escolha, pacientes diagnosticados com neoplasia maligna, desde que observados os seguintes condicionantes:
I - laudo médico que comprove o diagnóstico;
II - assinatura de termo de consentimento e responsabilidade pelo paciente ou seu representante legal.
Parágrafo único. A opção pelo uso voluntário da fosfoetanolamina sintética não exclui o direito de acesso a outras modalidades terapêuticas.
Art. 3º  Fica definido como de relevância pública o uso da fosfoetanolamina sintética nos termos desta Lei.
Art. 4º  Ficam permitidos a produção, manufatura, importação, distribuição, prescrição, dispensação, posse ou uso da fosfoetanolamina sintética, direcionados aos usos de que trata esta Lei, independentemente de registro sanitário, em caráter excepcional, enquanto estiverem em curso estudos clínicos acerca dessa substância.
Parágrafo único. A produção, manufatura, importação, distribuição, prescrição e dispensação da fosfoetanolamina sintética somente são permitidas para agentes regularmente autorizados e licenciados pela autoridade sanitária competente.
Como visto, a lei não prevê que seja necessária a prescrição da fosfoetanolaimina para que o paciente possa usá-la (art. 2º) , causa certa incerteza o ato de não haver prescrição médica, mas o simples laudo médico que comprove a patologia. A opção, que fica a cargo do paciente, poderá conflitar com outros procedimentos médicos em curso, expor o paciente a superdosagem de medicamentos ou, até mesmo, induzi-lo a abandonar tratamentos convencionais diante do potencial “milagroso” da pílula do câncer.
Segundo consulta efetuada na página oficial do Ministério da Saúde, o Sistema Único de Saúde não vai fornecer a fosfoetanolamina, porquanto não seja a substância um “medicamento”. Desta forma, quem quiser fazer uso da substância terá de pagar por ela (BRASIL, 2016). Isso não impede, todavia, aos juízes de continuarem a concedendo medidas liminares obrigando os sistemas públicos de saúde a oferecerem o produto aos pacientes, fundados no princípio da dignidade da pessoa humana, do direito à saúde, etc..
Em nota o  Ministério da Saúde divulgou informação de  que "está sendo sugerida a prescrição médica em talonário numerado que permita o rastreamento do paciente (com justificativa para o uso)" (BRASIL, 2016), ficando ao alvedrio do paciente optar ou não por utilizar o produto. Como se diante do desespero da doença terminal houve ponderação e escolha consciente acerca de riscos e benefícios.
Uma grande lacuna que se abre no ordenamento jurídico brasileiro, prometendo ser uma porta de esperança: para o paciente que busca a cura ou para a receita dos royalties e dos laboratórios que contam com público cativo e ampla divulgação midiática com forte apelo emocional, afinal, estamos diante de uma substância que promete ser capaz de curar uma das mais temidas enfermidades do ser humano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Há uma onda de descrédito para com a classe política que varre o país de norte a sul e tal ojeriza torna as decisões políticas algo desprezível.
No fundo, todos nós gostaríamos de acreditar que, realmente, houve a descoberta de uma pílula capaz de enfrentar e combater o câncer, evolvendo aos pacientes a vida digna, reduzindo os sofrimentos atrozes e semeando a esperança de dias melhores. Quem dera pudéssemos soltar rojões felicitando tal descoberta. Continuaremos orando para que tal aconteça.
Não obstante a ciência é cética. E o ceticismo científico nos requer provas inquestionáveis da eficácia da substância. Até que nos venham dados concretos e confiáveis de pesquisar sérias com resultados satisfatórios, a fosfoetanolamina não passa de um engodo, uma promessa vã que ao ser alçada a condição de “pílula milagrosa” pela mídia e legitimada pela lei, transformou-se em um toque de Midas ao detentor da patente, haja vista o público certo e a avidez pelo consumo.  Um insulto ao ser humano que se vê no ocaso da vida.

REFERÊNCIAS:

BRASIL, 2016. Agência Nacional de Vigilância Sanitária - <http://portal.anvisa.gov.br/wps/wmc/connect/dd9170048acfddab5b2b7e2d0c98834/RDC_52_2011_10_de_outubro_de_2011.pdf?MOD=AJPERES>
BRASIL, 2016. Senado Federal.<http://www25.senado.leg.be/web/atividade/materiais/-/material/122114>
BRASIL, 2016. Supremo Tribunal Federal <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4862001>
BRASIL, 2016. Ministério da Ciência e Tecnologia. <http://www.mcti.gov.br/fosfoetanolamina>
BRASIL, 2013. Declaração de Helsinque, 2013. <http://www.amb.org.br/_arquivos/_downloads/491535001395167888_DoHBrazilianPortugueseVersionRev.pdf>
BRASIL, 2016. Ministério da Saúde. <www.saude.gov.br/sisnep>
BRASIL, 2016. Associação Médica do Brasil. <http://www.amb.org.br/_arquivos/_downloads/491535001395167888_DoHBrazilianPortugueseVersionRev.pdf>
BRASIL, 2016. Lei 13.269. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13269.htm>
KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a Morte e o Morrer. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1969.
REINER, Rob. Antes de Partir. <http://wwws.br.warnerbros.com/bucketlist/>
SOUSA, Maria Sharmila A., FRANCO, Mirian A. G. ,MASSUD FILHO,  João.  A nova declaração de Helsinque e o uso de placebo em estudos clínicos no Brasil: a polêmica continua. Rev Med (São Paulo). 2012 jul.-set.;91(3):178-88. Disponível em < www.revistas.usp.br/revistadc/article/download/58980/61966>

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