O policial militar materializa o desempenho de sua função no documento conhecido como boletim de ocorrência. O presente estudo visa analisar a "certidão de nascimento" da apuração criminal, indicando conceito, natureza jurídica e aspectos legais.
Resumo: O presente estudo tem por escopo apresentar o boletim de ocorrência policial militar no mundo jurídico, traçando o delineamento normativo concernente aos envolvidos. Busca transportar a legislação penal e processual para o campo de execução procedimental. Toda hermenêutica é baseada na carga axiológica e principiológica imposta pela Constituição Federal de 1988. A parametrização dos procedimentos tem por finalidade manter a segurança jurídica para o cidadão destinatário do serviço policial e a legalidade na conduta do agente da lei.
Palavras-chave: Boletim de ocorrência, policial militar, procedimentos, envolvidos, jurídico.
INTRODUÇÃO
A atividade de execução do serviço policial militar requer, principalmente na atual conjuntura da cultura da informação, altíssimo conhecimento técnico, jurídico e procedimental. A produção doutrinária referente à função policial é parca e, geralmente, restringe-se a parte técnica. O objetivo do presente estudo é apresentar uma hermenêutica relacionada aos procedimentos jurídicos durante o registro do boletim de ocorrência (BO). Não buscou o artigo exaurir toda a temática. O aperfeiçoamento e novas concepções, até mesmo em sentido contrário à apresentada, são perfeitamente aceitáveis. Nesse sentido, trago a filosofia de produção do conhecimento exposta por Isaac Newton, segundo a qual para enxergarmos mais longe devemos estar sobre os ombros dos gigantes. A produção literária é uma eterna revisão.
O conhecimento produzido deve ser exposto e dividido para tornar fruto de análise, aperfeiçoamento e adaptações. Nicolau Maquiavel, em sua obra “O Príncipe”, aduz:
Querendo eu ofertar a Vossa Magnificência uma prova qualquer de minha obrigação, não encontrei, entre as minhas posses, nada que mais prezado me seja ou que tanto estremeça quanto o conhecimento das ações dos grandes homens, adquiridos por uma longa experiência das coisas atuais e uma repetida lição das antigas, as quais, tendo eu, com muito afinco, detidamente estudado, examinado-as, remeto agora a Vossa Magnificência, reduzidas a pequeno volume.
O conhecimento produzido tem valor incomensurável e inibe a repetida lição dos erros. Para uma vida profissional de policial militar é de extrema valia subir nos ombros dos grandes doutrinadores do direito e da atividade policial. Valorizar o conhecimento adquirido e repassa-lo, para que outros não tenham que aprender com o dissabor de processos administrativos, cíveis ou penais. Desse modo, passamos a produzir opiniões baseadas em argumentos jurídicos.
O Estado, visando à convivência harmônica no seio social, delimitou por normas os tipos incriminadores para balizar as condutas sociais. Quando alguém infringe a norma penal surge para o Estado o poder-dever de punir, conhecido com pretensão punitiva. Para fazer valer seu direito, através de imposições constitucionais, o Estado deve procurar os elementos probatórios que possibilitem o esclarecimento do fato e o seu autor. Posteriormente, levará todo o lastro probatório ao conhecimento da autoridade judiciária, legalmente investida, para valoração da conduta durante o julgamento.
Todo esse procedimento, apresentado de forma simples, é a figura da denominada persecução criminal ou penal. Para Tourinho Filho (2005, p. 15) “é a atividade de investigar o fato infringente à norma penal e pedir, em juízo, o julgamento da pretensão punitiva”. As fases em que é dividida a persecução criminal possuem divergência doutrinária quanto à nomenclatura, mas o conteúdo jurídico é o mesmo. Desse modo, a nomenclatura trabalhada aqui é a utilizada por Jesus (2010) e Tourinho Filho (2005).
Tendo como referencial paradigmático a conceituação de Tourinho Filho (2005), a persecução criminal divide-se em duas fases: a investigação e a instrução criminal. A primeira é a fase preparatória para a ação penal. Tem como finalidade municiar o Ministério Público de elementos para propositura da ação. A segunda visa dar lastro de fundamentação para o Juiz realizar o julgamento da lide penal. Os atos probatórios oriundos da fase de investigação devem passar por um
processo de judicialização, para se apresentarem com valor de prova na fase de instrução.
Apresentado o suporte teórico para compreensão conceitual, adentramos a análise da segunda dimensão da questão: o papel da polícia militar deve exercer dentro desse processo. Como alicerce doutrinário, utilizar-se-á o entendimento de Lazzarini (1999). O autor faz uma divisão de ciclos: ciclo de polícia e ciclo de persecução criminal. Tais ciclos funcionam de forma integrada e sistêmica.
Denota-se, a partir das considerações de Lazzarini (1999), que o ciclo de polícia é dividido em: a) situação de ordem pública normal; b) quebra desta ordem pública e sua restauração; e c) fase investigatória. No que tange o ciclo de persecução criminal, inicia-se com: a) quebra da ordem pública, no âmbito penal por meio de cometimento de um crime, e sua restauração; b) fase investigatória; c) fase processual; e d) fase das
penas.
A polícia militar atua na fase de situação de ordem pública normal, entendida por Lazzarini (1999) como situação em que há segurança, tranquilidade e salubridade pública. Nessa fase, a PM atua com ações dissuasivas, com a presença ostensiva. Na segunda fase, ocorre a interseção das atribuições entre a polícia militar e a polícia civil. Inicia-se a repressão que pode ser imediata, pela PM, constituindo em prisão em flagrante, a preservação das provas, entre outras medidas que irão auxiliar na persecução criminal e, por fim, a comunicação à polícia civil ou a autoridade judiciária. É nesta fase, por meio de um procedimento típico de polícia ostensiva administrativa, que o policial militar lavra o Boletim de Ocorrência (BO).
CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA
Na conduta procedimental operacional diária da PM, formalizando o atendimento de ocorrências, registra-se o documento chamado Boletim de Ocorrência (BO). Para compreensão da importância do BO é necessária uma análise minuciosa desse instrumento formal que origina toda a vida jurídica do cometimento de um crime.
No presente estudo delimitaremos o conceito de boletim de ocorrência com base em seus aspectos institucional, administrativo e criminal. No âmbito institucional de discussão trago a baila o texto da Instrução Conjunta n° 01/20 03 – Polícia Militar de
Minas Gerais e Ministério Público, que assim prescreve o conceito de BO: “é o registro ordenado e minucioso dos fatos ou atividades relacionados com a ocorrência, que exigirem a intervenção policial”. A definição expressa bem à representação institucional do BO. Ele tem por função formalizar a intervenção policial em fatos sociais criminais ou não. A maioria das instituições policiais militares do país exige o registro de boletim para documentar qualquer atividade, até mesmo quando não há nada constatado após o empenho pela central.
Com escopo de evidenciar a natureza do BO é salutar a afirmação de Lazzarini (1999, p. 96) que “os atos de polícia são
atos administrativos, e sujeitam-se aos mesmos princípios norteadores de tais atos, devendo ter, inclusive, a mesma infraestrutura, e seus elementos constitutivos”. Na esteira de compreensão aduz Di Pietro (1996, p. 162), “ato administrativo é a declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário”.
Perceptível pela hermenêutica do texto acima que o BO é a materialização de um ato administrativo. Tal ato, para que não seja eivado de ilegalidade, deve preencher alguns requisitos. Normativamente, estes requisitos estão presentes no art. 2o, da Lei Federal n° 4.717/65. Di Pietro (1996) assevera que:
É a orientação aqui adotada e que está consagrada no direito positivo brasileiro a partir da Lei 4.717/65 (Lei da Ação Popular), cujo art. 2o ao indicar os atos nulos, menciona os cinco elementos dos atos administrativos: competência, finalidade, forma, motivo e objeto (DI PIETRO, 1996, p. 168).
É necessário enveredar na transposição dos requisitos do ato administrativo para o campo de confecção do BO. O primeiro requisito é competência, no entendimento de Di Pietro (1996), consiste em uma atribuição outorgada por lei. É o poder legalmente atribuído ao agente da administração pública para desempenhar suas funções. O ato de lavratura do BO por policial militar perfaz o requisito apresentado, pois constitui autoridade competente para confecção do documento.
O segundo é o requisito da finalidade, como entende Moraes (2007), e consiste no resultado pretendido pela administração com a prática do ato, sempre visando o interesse público. A finalidade possui duas vertentes, a primeira, genérica, é o interesse público e a segunda, específica, é a editada pela vontade da lei. Verifica-se que o procedimento de confecção do BO atende as duas vertentes da finalidade do ato administrativo. Concretiza o interesse coletivo de apuração da quebra da Ordem Pública, formalidade de atos que possam ter
responsabilidade civil e a finalidade precípua de levar a conhecimento da autoridade competente a noticia de um fato com relevância jurídica.
O terceiro requisito é o da forma do ato administrativo. Para Gasparini (2011, p. 64) a forma é “o revestimento do ato administrativo. É o modo pelo qual o ato aparece, revela sua existência. É necessária à validade do ato”. A confecção do BO possui forma específica com delimitação de conteúdo necessário.
No concernente ao requisito do motivo, Di Pietro (1996, p. 84) ensina que “é o pressuposto de fato e de direito que serve de fundamento ao ato administrativo”. A confecção do BO pela polícia militar preenche os dois pressupostos. Ao tomar conhecimento do cometimento de infração penal ou fato de relevância jurídica, o policial está amparado no pressuposto fático que motiva o ato administrativo.
Encerrando os requisitos necessários para a validade do ato administrativo de confecção do BO está o objeto do ato. Para Moraes (2007, p. 115) o objeto do ato consiste no “efeito jurídico imediatamente produzido pelo ato, ou seja, o que foi criado, modificado, resguardado, extinto ou comprovado na ordem jurídica pela edição de determinado ato administrativo”. O objeto ou conteúdo do ato administrativo de confecção do BO é levar a conhecimento da autoridade competente a notícia de cometimento da infração penal ou fato de relevância jurídica. Tal objeto ou efeito jurídico pretendido é legalmente e moralmente aceito.
No campo de
direito penal, processual e material, o BO tem por finalidade levar a conhecimento da autoridade de polícia judiciária os indícios mínimos de materialidade e autoria do cometimento de uma infração criminal. Munidos das informações minuciosas do fato material, das circunstâncias e dos procedimentos policiais militares adotados o Delegado irá realizar a subsunção do fato ao tipo penal.
Na atual conjuntura, marcada pelo aumento da juridicialização dos fatos sociais, é plenamente plausível o registro de eventos que não possuam natureza criminal. O fato que venha a ter relevância na esfera jurídica, data vênia, é merecedor de registro. A formalização em documento oficial apresenta vários benefícios. A título de exemplo: um constrangimento por não recebimento de cheque em fila de supermercado, devido ao relato de nome incluso no SPC, sendo que o emissor tem certeza de não possuir dívidas. Com o registro do BO o cidadão terá o conjunto probatório reforçado, pois terá testemunhas arroladas, cópia da consulta anexa e comprovação, com a presença policial, da existência da situação.
Destarte, com fulcro em todo referencial teórico produzido alhures, é possível conceituar o boletim de ocorrência policial militar como: “Constitui em ato administrativo, com natureza declaratória e informativa, produzido pelo policial militar, para formalizar a atuação em fato social com relevância jurídica, sendo este criminal ou civil. Tem por finalidade levar a conhecimento da autoridade competente a notícia do cometimento de uma infração penal ou outro fato com relevância para garantir, preservar ou restabelecer direitos”.
APONTAMENTOS LEGAIS PARA O REGISTRO DO BO
O boletim de ocorrência policial militar, como peça jurídica informativa de suma importância para persecução criminal, requer o registro dos fatos com subsídios técnicos. O conhecimento do agente, para um bom registro, deve perpassar pelos campos da legislação vigente, doutrina atual, técnica policial e jurisprudência, com objetivo de resguardar a legalidade dos seus atos.
O primeiro fator a ser citado é a qualificação dos envolvidos no fato. O tipo de envolvimento deve ser preciso, pois atribuir fato tipificado como crime na ficha policial de um cidadão requer responsabilidade. Erros poderão culminar em ações na justiça civil e criminal. Os dados dos envolvidos, sempre, deverão ser verificados junto ao banco de informações. Os endereços devem ser minuciosamente descritos para facilitar a intimação dos partícipes da ocorrência. A falta de dados para intimação acarretam atrasos nos procedimentos e processos, gerando até mesmo arquivamento por falta de provas.
A natureza jurídica do fato possui interferência significativa. Erros na tipificação geram problemas na estatística e dificulta o planejamento preventivo e repressivo. A tipificação deve estar compatível com a narrativa do fato material descrito no histórico do BO. A autoridade de polícia judiciária poderá retificar o enquadramento justificando legalmente seu entendimento.
Na fase de redação do histórico da ocorrência, o policial deverá circunstanciar o fato motivador que ocasionou a presença policial no local, podendo ser acionamento por vítima, autor ou testemunha, empenho pela central ou iniciativa com a abordagem. Juridicamente tal fato inclui como testemunhas as pessoas que antecederam a atuação policial. Na esteira, urge a necessidade de narrar à natureza da ocorrência transmitida ou repassada pessoalmente pelo solicitante. É tal informação que o policial utiliza para a realização do pensamento e planejamento tático visando à abordagem e atuação. Exemplificando: natureza de
roubo em andamento, pessoa armada, tentativa de homicídio é fator justificador para imprimir maior velocidade a viatura e ultrapassar sinais, utilizar de abordagem enérgica, entre outras. No local o policial militar encontra uma simples discussão. Assim, no registro tem que especificar para justificar a autuação em radar por alta velocidade, abordagem em nível 3 em caso de denúncia na corregedoria.
No enveredar do registro deve elencar as informações administrativas pertinentes, lembrar que o BO estará presente como prova em futura apuração por sindicância regular. Exemplificando: passar em radar em alta velocidade, furar sinal semafórico, uso dos dispositivos, parada em local irregular, perda ou extravio de patrimônio público, reposição de munições, entre outras. Tais informações serão inseridas em conformidade com o processo narrativo da ocorrência, podendo estar no início, meio ou fim do BO.
Na mesma seara estrutural deverá consignar a narrativa do cenário encontrado: posição dos envolvidos, objetos, testemunhas dos fatos e dos procedimentos. Em seguida, evidenciar as providências tomadas: socorro as vítimas, isolamento do local, entre outras. Tal fato é importante para justificar a entrada no local, movimentação dos envolvidos, das provas e outras diversas situações.
Sequencialmente deverá relatar as versões da vítima, autor e testemunhas. Constar fatos, com fundamento nas elementares necessárias para o enquadramento nos tipos penais, visando explicitar a materialidade e autoria do crime. É de extrema valia a individualização de condutas dos policiais no cenário. É vital também a individualização de condutas dos outros envolvidos e localização exata dos materiais apreendidos. Exemplo: durante busca pessoal no conduzido Y, realizada pelo policial X, foram encontradas em seu bolso esquerdo 20 “bucha”s de substância análoga à maconha.
No corpo do BO deve constar quem deu voz de prisão em flagrante delito, que o detido foi informando dos seus direitos constitucionais, sendo eles: 1. Identificação do agente da prisão; 2. Motivo da prisão; 3. Assistência jurídica e familiar; 4. Local para onde será levado; 5. Informar a família ou outra pessoa; 6. Preservação da integridade física; 7. Permanecer Calado. Ademais, deverá constar o estado de saúde aparente do conduzido. Ex: o detido não apresenta lesões ou escoriações. O Militar deverá circunstanciar o atendimento médico fornecido ao conduzido e o número de protocolo. Em caso de alta médica, anexar cópia do documento. Nesse mesmo assunto cabe salientar que em ocorrência que haja vítima fatal o policial militar deverá constar o nome e registro da autoridade técnica que atestou a morte no local do crime, dispensando socorro médico. Instar o nome e registro do policial que assumiu o local de crime, pois a PM tem por competência preserva-lo até a chegada da autoridade policial.
Conforme Súmula 11 do STF, o uso de algemas deve ser justificado.
Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.
A jurisprudência reiterada virou súmula é vincula a obrigatoriedade de constar no BO a justificativa, taxativamente descrita no texto, sendo: resistência, receio de fuga ou perigo a integridade física.
Por fim, cabe frisar que todo objeto e instrumento de crime, bens materiais que estiverem em
posse do conduzido fica sobre custódia do policial militar até a entrega física para a polícia judiciária. Em caso de remoção de veículo envolvido em crime diretamente para o pátio credenciado, conduta comum em alguns municípios, sem passar pela autoridade de polícia judiciária, o militar deverá anexar cópia da Guia de Remoção de Veículo (GRV). Assim, o policial possui responsabilidade civil e criminal relativas ao bem.
O policial militar materializa o desempenho de sua função no documento conhecido como boletim de ocorrência. O presente estudo visa analisar a "certidão de nascimento" da apuração criminal, indicando conceito, natureza jurídica e aspectos legais.
Resumo: O presente estudo tem por escopo apresentar o boletim de ocorrência policial militar no mundo jurídico, traçando o delineamento normativo concernente aos envolvidos. Busca transportar a legislação penal e processual para o campo de execução procedimental. Toda hermenêutica é baseada na carga axiológica e principiológica imposta pela Constituição Federal de 1988. A parametrização dos procedimentos tem por finalidade manter a segurança jurídica para o cidadão destinatário do serviço policial e a legalidade na conduta do agente da lei.
Palavras-chave: Boletim de ocorrência, policial militar, procedimentos, envolvidos, jurídico.
INTRODUÇÃO
A atividade de execução do serviço policial militar requer, principalmente na atual conjuntura da cultura da informação, altíssimo conhecimento técnico, jurídico e procedimental. A produção doutrinária referente à função policial é parca e, geralmente, restringe-se a parte técnica. O objetivo do presente estudo é apresentar uma hermenêutica relacionada aos procedimentos jurídicos durante o registro do boletim de ocorrência (BO). Não buscou o artigo exaurir toda a temática. O aperfeiçoamento e novas concepções, até mesmo em sentido contrário à apresentada, são perfeitamente aceitáveis. Nesse sentido, trago a filosofia de produção do conhecimento exposta por Isaac Newton, segundo a qual para enxergarmos mais longe devemos estar sobre os ombros dos gigantes. A produção literária é uma eterna revisão.
O conhecimento produzido deve ser exposto e dividido para tornar fruto de análise, aperfeiçoamento e adaptações. Nicolau Maquiavel, em sua obra “O Príncipe”, aduz:
Querendo eu ofertar a Vossa Magnificência uma prova qualquer de minha obrigação, não encontrei, entre as minhas posses, nada que mais prezado me seja ou que tanto estremeça quanto o conhecimento das ações dos grandes homens, adquiridos por uma longa experiência das coisas atuais e uma repetida lição das antigas, as quais, tendo eu, com muito afinco, detidamente estudado, examinado-as, remeto agora a Vossa Magnificência, reduzidas a pequeno volume.
O conhecimento produzido tem valor incomensurável e inibe a repetida lição dos erros. Para uma vida profissional de policial militar é de extrema valia subir nos ombros dos grandes doutrinadores do direito e da atividade policial. Valorizar o conhecimento adquirido e repassa-lo, para que outros não tenham que aprender com o dissabor de processos administrativos, cíveis ou penais. Desse modo, passamos a produzir opiniões baseadas em argumentos jurídicos.
O Estado, visando à convivência harmônica no seio social, delimitou por normas os tipos incriminadores para balizar as condutas sociais. Quando alguém infringe a norma penal surge para o Estado o poder-dever de punir, conhecido com pretensão punitiva. Para fazer valer seu direito, através de imposições constitucionais, o Estado deve procurar os elementos probatórios que possibilitem o esclarecimento do fato e o seu autor. Posteriormente, levará todo o lastro probatório ao conhecimento da autoridade judiciária, legalmente investida, para valoração da conduta durante o julgamento.
Todo esse procedimento, apresentado de forma simples, é a figura da denominada persecução criminal ou penal. Para Tourinho Filho (2005, p. 15) “é a atividade de investigar o fato infringente à norma penal e pedir, em juízo, o julgamento da pretensão punitiva”. As fases em que é dividida a persecução criminal possuem divergência doutrinária quanto à nomenclatura, mas o conteúdo jurídico é o mesmo. Desse modo, a nomenclatura trabalhada aqui é a utilizada por Jesus (2010) e Tourinho Filho (2005).
Tendo como referencial paradigmático a conceituação de Tourinho Filho (2005), a persecução criminal divide-se em duas fases: a investigação e a instrução criminal. A primeira é a fase preparatória para a ação penal. Tem como finalidade municiar o Ministério Público de elementos para propositura da ação. A segunda visa dar lastro de fundamentação para o Juiz realizar o julgamento da lide penal. Os atos probatórios oriundos da fase de investigação devem passar por um
processo de judicialização, para se apresentarem com valor de prova na fase de instrução.
Apresentado o suporte teórico para compreensão conceitual, adentramos a análise da segunda dimensão da questão: o papel da polícia militar deve exercer dentro desse processo. Como alicerce doutrinário, utilizar-se-á o entendimento de Lazzarini (1999). O autor faz uma divisão de ciclos: ciclo de polícia e ciclo de persecução criminal. Tais ciclos funcionam de forma integrada e sistêmica.
Denota-se, a partir das considerações de Lazzarini (1999), que o ciclo de polícia é dividido em: a) situação de ordem pública normal; b) quebra desta ordem pública e sua restauração; e c) fase investigatória. No que tange o ciclo de persecução criminal, inicia-se com: a) quebra da ordem pública, no âmbito penal por meio de cometimento de um crime, e sua restauração; b) fase investigatória; c) fase processual; e d) fase das
penas.
A polícia militar atua na fase de situação de ordem pública normal, entendida por Lazzarini (1999) como situação em que há segurança, tranquilidade e salubridade pública. Nessa fase, a PM atua com ações dissuasivas, com a presença ostensiva. Na segunda fase, ocorre a interseção das atribuições entre a polícia militar e a polícia civil. Inicia-se a repressão que pode ser imediata, pela PM, constituindo em prisão em flagrante, a preservação das provas, entre outras medidas que irão auxiliar na persecução criminal e, por fim, a comunicação à polícia civil ou a autoridade judiciária. É nesta fase, por meio de um procedimento típico de polícia ostensiva administrativa, que o policial militar lavra o Boletim de Ocorrência (BO).
CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA
Na conduta procedimental operacional diária da PM, formalizando o atendimento de ocorrências, registra-se o documento chamado Boletim de Ocorrência (BO). Para compreensão da importância do BO é necessária uma análise minuciosa desse instrumento formal que origina toda a vida jurídica do cometimento de um crime.
No presente estudo delimitaremos o conceito de boletim de ocorrência com base em seus aspectos institucional, administrativo e criminal. No âmbito institucional de discussão trago a baila o texto da Instrução Conjunta n° 01/20 03 – Polícia Militar de
Minas Gerais e Ministério Público, que assim prescreve o conceito de BO: “é o registro ordenado e minucioso dos fatos ou atividades relacionados com a ocorrência, que exigirem a intervenção policial”. A definição expressa bem à representação institucional do BO. Ele tem por função formalizar a intervenção policial em fatos sociais criminais ou não. A maioria das instituições policiais militares do país exige o registro de boletim para documentar qualquer atividade, até mesmo quando não há nada constatado após o empenho pela central.
Com escopo de evidenciar a natureza do BO é salutar a afirmação de Lazzarini (1999, p. 96) que “os atos de polícia são
atos administrativos, e sujeitam-se aos mesmos princípios norteadores de tais atos, devendo ter, inclusive, a mesma infraestrutura, e seus elementos constitutivos”. Na esteira de compreensão aduz Di Pietro (1996, p. 162), “ato administrativo é a declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário”.
Perceptível pela hermenêutica do texto acima que o BO é a materialização de um ato administrativo. Tal ato, para que não seja eivado de ilegalidade, deve preencher alguns requisitos. Normativamente, estes requisitos estão presentes no art. 2o, da Lei Federal n° 4.717/65. Di Pietro (1996) assevera que:
É a orientação aqui adotada e que está consagrada no direito positivo brasileiro a partir da Lei 4.717/65 (Lei da Ação Popular), cujo art. 2o ao indicar os atos nulos, menciona os cinco elementos dos atos administrativos: competência, finalidade, forma, motivo e objeto (DI PIETRO, 1996, p. 168).
É necessário enveredar na transposição dos requisitos do ato administrativo para o campo de confecção do BO. O primeiro requisito é competência, no entendimento de Di Pietro (1996), consiste em uma atribuição outorgada por lei. É o poder legalmente atribuído ao agente da administração pública para desempenhar suas funções. O ato de lavratura do BO por policial militar perfaz o requisito apresentado, pois constitui autoridade competente para confecção do documento.
O segundo é o requisito da finalidade, como entende Moraes (2007), e consiste no resultado pretendido pela administração com a prática do ato, sempre visando o interesse público. A finalidade possui duas vertentes, a primeira, genérica, é o interesse público e a segunda, específica, é a editada pela vontade da lei. Verifica-se que o procedimento de confecção do BO atende as duas vertentes da finalidade do ato administrativo. Concretiza o interesse coletivo de apuração da quebra da Ordem Pública, formalidade de atos que possam ter
responsabilidade civil e a finalidade precípua de levar a conhecimento da autoridade competente a noticia de um fato com relevância jurídica.
O terceiro requisito é o da forma do ato administrativo. Para Gasparini (2011, p. 64) a forma é “o revestimento do ato administrativo. É o modo pelo qual o ato aparece, revela sua existência. É necessária à validade do ato”. A confecção do BO possui forma específica com delimitação de conteúdo necessário.
No concernente ao requisito do motivo, Di Pietro (1996, p. 84) ensina que “é o pressuposto de fato e de direito que serve de fundamento ao ato administrativo”. A confecção do BO pela polícia militar preenche os dois pressupostos. Ao tomar conhecimento do cometimento de infração penal ou fato de relevância jurídica, o policial está amparado no pressuposto fático que motiva o ato administrativo.
Encerrando os requisitos necessários para a validade do ato administrativo de confecção do BO está o objeto do ato. Para Moraes (2007, p. 115) o objeto do ato consiste no “efeito jurídico imediatamente produzido pelo ato, ou seja, o que foi criado, modificado, resguardado, extinto ou comprovado na ordem jurídica pela edição de determinado ato administrativo”. O objeto ou conteúdo do ato administrativo de confecção do BO é levar a conhecimento da autoridade competente a notícia de cometimento da infração penal ou fato de relevância jurídica. Tal objeto ou efeito jurídico pretendido é legalmente e moralmente aceito.
No campo de
direito penal, processual e material, o BO tem por finalidade levar a conhecimento da autoridade de polícia judiciária os indícios mínimos de materialidade e autoria do cometimento de uma infração criminal. Munidos das informações minuciosas do fato material, das circunstâncias e dos procedimentos policiais militares adotados o Delegado irá realizar a subsunção do fato ao tipo penal.
Na atual conjuntura, marcada pelo aumento da juridicialização dos fatos sociais, é plenamente plausível o registro de eventos que não possuam natureza criminal. O fato que venha a ter relevância na esfera jurídica, data vênia, é merecedor de registro. A formalização em documento oficial apresenta vários benefícios. A título de exemplo: um constrangimento por não recebimento de cheque em fila de supermercado, devido ao relato de nome incluso no SPC, sendo que o emissor tem certeza de não possuir dívidas. Com o registro do BO o cidadão terá o conjunto probatório reforçado, pois terá testemunhas arroladas, cópia da consulta anexa e comprovação, com a presença policial, da existência da situação.
Destarte, com fulcro em todo referencial teórico produzido alhures, é possível conceituar o boletim de ocorrência policial militar como: “Constitui em ato administrativo, com natureza declaratória e informativa, produzido pelo policial militar, para formalizar a atuação em fato social com relevância jurídica, sendo este criminal ou civil. Tem por finalidade levar a conhecimento da autoridade competente a notícia do cometimento de uma infração penal ou outro fato com relevância para garantir, preservar ou restabelecer direitos”.
APONTAMENTOS LEGAIS PARA O REGISTRO DO BO
O boletim de ocorrência policial militar, como peça jurídica informativa de suma importância para persecução criminal, requer o registro dos fatos com subsídios técnicos. O conhecimento do agente, para um bom registro, deve perpassar pelos campos da legislação vigente, doutrina atual, técnica policial e jurisprudência, com objetivo de resguardar a legalidade dos seus atos.
O primeiro fator a ser citado é a qualificação dos envolvidos no fato. O tipo de envolvimento deve ser preciso, pois atribuir fato tipificado como crime na ficha policial de um cidadão requer responsabilidade. Erros poderão culminar em ações na justiça civil e criminal. Os dados dos envolvidos, sempre, deverão ser verificados junto ao banco de informações. Os endereços devem ser minuciosamente descritos para facilitar a intimação dos partícipes da ocorrência. A falta de dados para intimação acarretam atrasos nos procedimentos e processos, gerando até mesmo arquivamento por falta de provas.
A natureza jurídica do fato possui interferência significativa. Erros na tipificação geram problemas na estatística e dificulta o planejamento preventivo e repressivo. A tipificação deve estar compatível com a narrativa do fato material descrito no histórico do BO. A autoridade de polícia judiciária poderá retificar o enquadramento justificando legalmente seu entendimento.
Na fase de redação do histórico da ocorrência, o policial deverá circunstanciar o fato motivador que ocasionou a presença policial no local, podendo ser acionamento por vítima, autor ou testemunha, empenho pela central ou iniciativa com a abordagem. Juridicamente tal fato inclui como testemunhas as pessoas que antecederam a atuação policial. Na esteira, urge a necessidade de narrar à natureza da ocorrência transmitida ou repassada pessoalmente pelo solicitante. É tal informação que o policial utiliza para a realização do pensamento e planejamento tático visando à abordagem e atuação. Exemplificando: natureza de
roubo em andamento, pessoa armada, tentativa de homicídio é fator justificador para imprimir maior velocidade a viatura e ultrapassar sinais, utilizar de abordagem enérgica, entre outras. No local o policial militar encontra uma simples discussão. Assim, no registro tem que especificar para justificar a autuação em radar por alta velocidade, abordagem em nível 3 em caso de denúncia na corregedoria.
No enveredar do registro deve elencar as informações administrativas pertinentes, lembrar que o BO estará presente como prova em futura apuração por sindicância regular. Exemplificando: passar em radar em alta velocidade, furar sinal semafórico, uso dos dispositivos, parada em local irregular, perda ou extravio de patrimônio público, reposição de munições, entre outras. Tais informações serão inseridas em conformidade com o processo narrativo da ocorrência, podendo estar no início, meio ou fim do BO.
Na mesma seara estrutural deverá consignar a narrativa do cenário encontrado: posição dos envolvidos, objetos, testemunhas dos fatos e dos procedimentos. Em seguida, evidenciar as providências tomadas: socorro as vítimas, isolamento do local, entre outras. Tal fato é importante para justificar a entrada no local, movimentação dos envolvidos, das provas e outras diversas situações.
Sequencialmente deverá relatar as versões da vítima, autor e testemunhas. Constar fatos, com fundamento nas elementares necessárias para o enquadramento nos tipos penais, visando explicitar a materialidade e autoria do crime. É de extrema valia a individualização de condutas dos policiais no cenário. É vital também a individualização de condutas dos outros envolvidos e localização exata dos materiais apreendidos. Exemplo: durante busca pessoal no conduzido Y, realizada pelo policial X, foram encontradas em seu bolso esquerdo 20 “bucha”s de substância análoga à maconha.
No corpo do BO deve constar quem deu voz de prisão em flagrante delito, que o detido foi informando dos seus direitos constitucionais, sendo eles: 1. Identificação do agente da prisão; 2. Motivo da prisão; 3. Assistência jurídica e familiar; 4. Local para onde será levado; 5. Informar a família ou outra pessoa; 6. Preservação da integridade física; 7. Permanecer Calado. Ademais, deverá constar o estado de saúde aparente do conduzido. Ex: o detido não apresenta lesões ou escoriações. O Militar deverá circunstanciar o atendimento médico fornecido ao conduzido e o número de protocolo. Em caso de alta médica, anexar cópia do documento. Nesse mesmo assunto cabe salientar que em ocorrência que haja vítima fatal o policial militar deverá constar o nome e registro da autoridade técnica que atestou a morte no local do crime, dispensando socorro médico. Instar o nome e registro do policial que assumiu o local de crime, pois a PM tem por competência preserva-lo até a chegada da autoridade policial.
Conforme Súmula 11 do STF, o uso de algemas deve ser justificado.
Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.
A jurisprudência reiterada virou súmula é vincula a obrigatoriedade de constar no BO a justificativa, taxativamente descrita no texto, sendo: resistência, receio de fuga ou perigo a integridade física.
Por fim, cabe frisar que todo objeto e instrumento de crime, bens materiais que estiverem em
posse do conduzido fica sobre custódia do policial militar até a entrega física para a polícia judiciária. Em caso de remoção de veículo envolvido em crime diretamente para o pátio credenciado, conduta comum em alguns municípios, sem passar pela autoridade de polícia judiciária, o militar deverá anexar cópia da Guia de Remoção de Veículo (GRV). Assim, o policial possui responsabilidade civil e criminal relativas ao bem.
CONCLUSÃO
A atividade policial militar é dinâmica e complexa. Exige conhecimento multidisciplinar e constante atualização. A doutrina policial é focada em procedimento operacional técnico, sendo parca a produção jurídica.
O Boletim de Ocorrência policial militar possui natureza jurídica de ato administrativo informativo. Tem por objetivo levar a conhecimento das autoridades competentes fatos sociais com relevância jurídica.
No contexto da legislação atual os casos de condução para o Departamento de Polícia Judiciária, na condição de detido, são: preso em flagrante delito, pessoa com mandado de prisão em aberto ou foragido recapturado. Não é legal a condução compulsória da vítima ou testemunhas para a Delegacia. Igualmente o descumprimento de medida protetiva e a falta de alvará não constituem em justificativa jurídica para condução ao DPJ.
O instituto da representação não poderá ser levado a efeito perante do policial militar, conforme art. 38 do Código de
Processo Penal. O policial militar deve constar no histórico do BO a justificativa jurídica e circunstancial que ampararam a condução do detido ao DPJ.
No histórico do BO deve ficar claro o indicio mínimo de materialidade e autoria da infração penal cometida. Caso utilize de força, obrigatoriamente, deverá lavrar o Auto de Resistência.
REFERÊNCIAS
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Tenente na Polícia Militar do Espírito Santo<br><br>Bacharel em Ciências Militares (Curso de Formação de Oficiais) pela Academia de Polícia Militar de Minas Gerais. <br><br>Bacharelando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).<br><br>